Sexta-feira, 19 de Abril de 2024

Crônica D’P: Marido fiel, mulher ciumenta – por Luiz Fernando Cheres

2022-04-19 às 17:09

Tarde da noite, sozinho no bar, tomando a saideira, e me apareceu o Zé.

— Não aguento mais, a Jô tá uma vespa! Uma cobra!

— Culpa sua, Zé.

— A Jô vira bicho e a culpa é minha?

— Você exagera na aparência, todo cheiroso, alinhadinho.

— E você é neandertal, Cheres.

— Ao menos minha mulher não morre de ciúme.

— A Jô tem ciúme de tudo. Até dessa mecha grisalha no alto da testa.

— Ela reclama de você voltar a estudar, Zé. Ainda mais à noite, a mulherada por perto.

— Mas e o futuro das crianças?… Estudar não é pecado. Sempre fui bom marido, bom pai.

— Só que esconde o chocolate na caixa de ferramenta… Zé, de homem pra homem: universidade, curso noturno e esposa ciumenta, isso é uma mistura complicada, é torta de morango com cobertura de banha de porco.

— Sei disso, como sei! De cara, já vi a encrenca. Aquela loirinha, a que mora no bangalô verde, imagine só, a deusa estuda comigo.

— A loira que nunca olhou pra você?

— Tem uns lábios, uma cintura, cabelo macio! Mas o paraíso é o bumbum, o bumbum me faz lembrar de quando a mãe fazia pão em casa.

— Agora você viajou, Zé!

— A massa do pão crescia demais e fugia pra fora da forma. É a mesma visão do bumbum, uma fartura!

— Zé, pão é pão, carne é carne. Onde se ganha o pão, não se come a carne.

— Pois a loirinha olhou pra mim.

— Ai ai ai!

— Na verdade, a moça é inocente e pura, Cheres. Vive de vendas.

— Eu imagino. E você passou a dar carona pra inocente, na volta da aula.

— Como você adivinhou?

— Zé, você já viu defunto recusar o caixão?

— Na primeira vez, ela pediu pra estacionar meio longe, no escuro. Conversamos um tiquinho e…

— Nem precisa contar o resto, eu já sei!

— Não houve nada. Ou melhor, quase nada.

— O “quase” sempre é o problema, Zé.

— A gente só conversou, eu sou tongo, e a deusa foi embora. Mas, quando cheguei em casa, percebi que ela deixou os óculos no carro. E a Jô vindo em minha direção, imagine se a Jô vê óculos de mulher no carro?

— Daí a cobra fuma.

— Não nasci ontem, botei os óculos no bolso e abri o portão pra Tuavó fugir.

— Minha vó?

— Tuavó é o nome da minha cadela. Com a cadela fugindo, eu fui atrás. Quanto mais eu corria, mais a Tuavó fugia. A Jô ia me ajudar, mas eu disse “louca do céu, vai largar as crianças sozinhas?”, e foi a chance de bater na porta da moça e devolver os óculos.

— E a Tuavó?

— Parei de correr, me abaixei, e a Tuavó veio abanando o rabinho.

— Espero que isso tenha servido de lição, Zé.

— Claro que serviu, Cheres.

— Nunca mais deu carona pra encrenca?

— Óbvio que dei, mas sempre de olho nos óculos dela, ali, presos no botão da camisa, perto do seio. Pena que meu olhar se desviou… Hoje de manhã, notei que ontem a loira havia perdido sutiã e calcinha no carro.

— Me poupe dos detalhes.

— Você é maldoso, Cheres! Hoje é aniversário da Jô, e ontem eu nem tinha comprado presente. Já disse que a moça trabalha com vendas, não disse?… Vende joia, lingerie, perfume, e me deu várias opções. Escolhi um anel, e ela ficou de embrulhar pra presente e me entregar hoje à noite, na aula. Depois, eu faria surpresa pra Jô, a gente ia jantar fora… Por azar, caíram uma calcinha e um sutiã no carro.

— Eita! E a Jô encontrou!

— Não! Não achou nada! Hoje, levei a calcinha e o sutiã pra aula, cheguei cedo, pois sabia que a loira é sempre a primeira. Sozinhos na sala, ninguém ia perceber, e eu devolvia aquelas maravilhas.

— Boa ideia.

— A moça pisou na sala, e eu já com calcinha e sutiã na mão… “Olha só, maluquinha, o que você esqueceu no meu carro ontem à noite!”

— Você é esperto, Zé!

— Nesse momento, notei a Jô entrando, atrás da loirinha. Tá vendo meu olho, Cheres?… Roxo, né?

 

Luiz Fernando Cheres é escritor, autor de Um Beijo Longe dos Lábios e Amar Não é Preciso. Ocupa a Cadeira número 11 na Academia de Letras dos Campos Gerais

 

Conteúdo publicado originalmente na Revista D’Ponta #289 Março/Abril de 2022.