Tarde da noite, eu quase dormindo, Isabel, a minha vizinha, me chama na frente de casa.
Acendo as luzes, visto-me rapidamente e vou até lá.
Entre nervosa e confusa, ela vai direto ao assunto.
– A Pequena está agonizando.
Abro o portão e saio para a calçada.
– Mas como assim? Agonizando?
Indicando o caminho com a cabeça, ela começa a descer a rua.
– Foi atropelada. Acho que já morreu.
Quando olho em direção à esquina, já avisto o corpo da cachorrinha na calçada.
Junto a ela, Isabel e eu nos abaixamos e começamos a observá-la em busca de sinais vitais.
Com muito mais destemor e empatia do que eu, Isabel toca no focinho da cachorra e aperta a região do peito, próximo de onde eu imagino que fica o coração.
– Veja. Não sai ar da boca. Está tudo parado.
Vencendo a estranheza de tocar em coisas mortas, inspeciono a cachorra com a mão.
– Ponha a mão aqui. Não parece que o coração está batendo?
Isabel repousa a mão demoradamente sobre o animal.
– Não. Não está batendo. E veja a língua dela. Está toda para fora. Os olhos não se mexem. As pupilas estão paralisadas. Ela está morta.
Enquanto contemplamos o pequeno cadáver, um vulto surge da escuridão. Com uma latinha de cerveja na mão e alguns entorpecentes na cabeça, ele se aproxima.
– Morreu?
Confirmo com a cabeça.
Ele se abaixa e examina lentamente a cachorrinha.
– Era de um vizinho meu. Ele foi embora e deixou ela por aí.
Isabel detalha o ocorrido, como se quisesse dar explicações.
– Ela estava deitada no meio da rua. Ela tinha o costume de fazer isso. Veio um carro, não muito rápido, e bateu nela. Fez um barulhão. Ela gritou e se arrastou até a calçada. Eu só vi depois que o carro já tinha passado.
Após beber um gole de cerveja, o desconhecido dá o seu parecer, em tom de especialista.
– A batida dilacerou ela por dentro.
Olhando absorto para o animal, fico pensando no fato de um bêbado usar o termo “dilacerar”.
Isabel coloca as mãos na cintura e fica em silêncio por um momento.
– Você cuida disso? Tem de arranjar uma caixa ou um lençol para enrolar ela.
Pegando a deixa, o desconhecido faz uma inesperada sugestão.
– Eu posso enterrá-la.
Venho para casa, pego um lençol e volto à cena do acidente. Isabel já foi embora. Enquanto enrolo a cachorrinha, noto como o seu corpo está morno, mole, dócil, como ela sempre tinha sido. Coloco o lençol em volta dela e confirmo a questão do enterro com o desconhecido, não sem sentir algum alívio.
– Você a enterra?
Ele bebe o resto de cerveja, põe a lata no chão e esfrega as mãos, como se as limpasse.
– Enterro. Vou enterrar em um lugar ali perto de casa. Já enterrei vários animais ali. Vou colocar uma cruz.
Pensando na ideia da cruz, lembro-me de um padre que me disse, certa vez, que animais não têm alma.
Com a Pequena no colo, o homem olha para mim do fundo de seu entorpecimento.
– Aí o senhor me ajuda com um dinheirinho para eu comprar uma pinga?
Volto para casa mais uma vez, pego uma nota e lhe entrego. Ele a põe no bolso e, sem dizer mais nada, desce pela rua com o animal, sob a luz amarela dos postes. A cabecinha da Pequena pende solta de um dos lados, balançando conforme o andar lento e cerimonioso do coveiro.
Rafael Guedes é jornalista e tradutor