Sábado, 27 de Julho de 2024

Debate D’P: O Brasil é um país realmente laico?

2024-05-26 às 10:29
Foto: Reprodução

Um professor, um historiador, um pastor e um teólogo discutem as relações entre religião e política

por Michelle de Geus

Todos os brasileiros têm direito à vida, à igualdade e à liberdade, incluindo a religiosa. O princípio da laicidade – sistema político em que o Estado é oficialmente imparcial em relação a questões religiosas, não apoiando nem se opondo a nenhuma religião – está previsto na Constituição Federal de 1988 como um dos direitos e garantias fundamentais de todos os cidadãos. A separação entre Estado e Igreja não apenas garante a liberdade de culto e de expressão da fé como também garante que não haverá interferência da religião na política, na cultura e na educação.

Na prática, porém, a discussão se reveste de diferentes – e delicadas – nuances. Há quem questione, por exemplo, a interferência da chamada “bancada evangélica”, uma das maiores e mais poderosas do Congresso Nacional, em questões que afetam não só os cristãos, mas todos os cidadãos, como saúde pública, educação, união matrimonial, orçamento, entre outros. O debate se acirrou ainda mais após a emergência da direita conservadora no cenário político e a eleição de Jair Bolsonaro para presidente da República em 2018, que deu maior respaldo e visibilidade à agenda cristã.

Diante dessa situação, muitos se perguntam se o Brasil é realmente um país laico, tal como preconiza a Constituição de 1988. Com isso em mente, conversamos com um professor universitário, um historiador, um pastor e um teólogo para discutir as relações entre religião e política no país e em Ponta Grossa. Em seus depoimentos, eles explicam a origem e a importância da laicidade, e responderam à pergunta crucial: o Brasil é um país realmente laico?

ONDA FUNDAMENTALISTA

“No último Governo Federal, vimos a ampla ingerência política das igrejas evangélicas nas atividades estatais, o que representou o maior ataque ao Estado laico na história deste país. O fundamentalismo religioso corroeu as bases da liberdade, da tolerância religiosa e da autonomia do Estado diante das religiões. Efetivamente existe um projeto de poder da parte de algumas religiões evangélicas, que se utilizam do fundamentalismo religioso e das ideologias da extrema direita ultraconservadora para alcançar o seu objetivo. A disseminação do ódio e da intolerância religiosa é um dos principais mecanismos utilizados por esses grupos, que estão sendo aglutinados através da Frente Parlamentar Evangélica no plano nacional e do Bloco Cristão na Câmara Municipal de Ponta Grossa. As iniciativas do atual Governo Federal, apesar de tímidas, apontam para a defesa do Estado laico, e a sociedade civil organizada tem criado diversas alternativas para tentar barrar o avanço dessa onda fundamentalista”

João Luiz Stefaniak, advogado, professor universitário, mestre em Ciências Sociais, doutor em Geografia e covereador pelo PSOL

LAICIDADE COLABORATIVA

“O ser humano é inteiro e não tem como separar a pessoa daquilo que ela acredita. A laicidade colaborativa considera a fé como parte fundamental da existência humana e reconhece a religião como parceira do Estado na promoção do bem comum. O que vemos em nossos dias é que as pessoas estão perdendo o respeito e a capacidade de conviver com o diferente. Assim, acaba prevalecendo uma cultura de ‘laicismo de combate’, que atribui função e significado para alguns tipos de religião em detrimento e afronta a outras formas de expressão religiosa. Não é coerente o Estado reconhecer algumas religiões como operadoras de políticas públicas e relegar outras ao espaço privado. Se somos um Estado laico, é preciso ter espaço para todas as expressões religiosas e todas as organizações religiosas devem ser respeitadas. Precisamos amadurecer e construir espaços saudáveis no ambiente público para o respeito, para a liberdade de expressão da fé e para o ensino religioso”

Paulo César Ferreira de Camargo, pastor e presidente da Associação de Ministros Evangélicos de Ponta Grossa

SUBVERSÃO DA LÓGICA LAICISTA

“Primeiramente, em nível de Estado, o Brasil é, constitucionalmente, um país laico. A laicidade está prevista na Constituição Federal, sendo uma questão legal e estrutural do nosso país. Acontece que, ao ser uma democracia também, a cada eleição mais sujeitos do universo religioso se candidatam a cargos públicos. Consequentemente, um número cada vez maior deles acaba se elegendo e assumindo mandatos públicos com pautas que visam justamente subverter a lógica laica do Estado, tornando-a religiosa. Esta é uma postura que coloca em risco o preceito iluminista básico do Estado laico. Eu considero isso muito preocupante, obviamente, porque, à medida que você tem um grupo que consegue ser majoritário e impor a sua visão de religião para todo o aparelho do Estado, você corre o risco de marginalizar os demais grupos religiosos com as suas respectivas visões”

Fabio Bacila Sahd, historiador e professor do departamento de história da Universidade Federal do Paraná

PRINCÍPIO DA INDIFERENÇA

“Dom Pedro I, na formação do Estado brasileiro, constituiu o Império usando o seguinte termo: ‘em nome da Santíssima Trindade’. O catolicismo era a religião oficial e dominante naquela época. A laicidade do Estado brasileiro começou a tomar forma com Dom Pedro II, graças à influência da política europeia. Ele tinha contato com grandes estadistas europeus e percebia a liberdade religiosa que havia naqueles lugares, sem a predominância de um credo ou outro. Algumas pessoas se confundem e pensam que o Estado brasileiro, por ter a maioria de sua população cristã, é um Estado cristão. O Estado, na verdade, deve estar totalmente indiferente à religião, mesmo que exista um grupo religioso que seja a maioria. O direito de poder professar aquilo em que se acredita, seja qual for a sua forma de acreditar, é uma liberdade fundamental e devemos respeitar o credo de cada um. Além disso, toda pessoa tem dentro de si uma bússola moral que aponta para o que é certo e o que é errado. É isso que norteia o Estado e os políticos, não esta ou aquela religião”

Beto Okazaki, teólogo, empresário e ativista político

Conteúdo publicado originalmente na Revista D’Ponta #300