Quinta-feira, 02 de Maio de 2024

Debate D’P: Se Deus é bom, por que existe o mal?

2023-10-07 às 09:58
Foto: Reprodução

Em um mundo governado, em tese, por um Deus todo-poderoso e amoroso, por que acontecem catástrofes naturais, mortes de inocentes, injustiças, crueldades e tantas outras formas de maldade? Quatro especialistas respondem a essa milenar questão

Nos “Diálogos sobre a Religião Natural”, o filósofo, historiador e ensaísta britânico David Hume (1711-1776) questionava: “Quer Deus impedir o mal, mas não pode? Então é impotente. Pode, mas não quer? Então é malévolo. Quer e pode? De onde vem, então, o mal?”

A dúvida já desafiava a compreensão de pensadores desde a Antiguidade. Três séculos antes de Cristo, no período helenístico, o filósofo grego Epicuro de Samos (341 a.C. – 270 a.C.) ponderava sobre a impossibilidade de existir o mal e um Deus onipotente, onipresente, onisciente e bondoso na mesma realidade – o famoso Paradoxo de Epicuro.

Alguns séculos mais tarde, Santo Agostinho (354 d.C. – 430 d.C.), um dos principais teólogos e filósofos dos primeiros séculos do Cristianismo, negava a existência substancial do mal, em contraste a Epicuro, que afirmava a sua real existência. Para o bispo de Hipona, o mal seria uma opção pelo “não-bem”, movida pela ação corrompida de um ser dotado de livre-arbítrio – o ser humano.

Já na idade moderna, o filósofo alemão Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) cunhou o termo “teodiceia” (do grego “teo”: Deus + “dikê”: justiça) para tentar mostrar que a justiça divina era compatível com o mal. Para ele, Deus não era capaz de criar um universo maximamente perfeito sem criar, ao mesmo tempo, coisas que, aos olhos humanos, parecessem males gratuitos, isto é, que não servem a qualquer finalidade suficientemente boa que os compensem.

Na contemporaneidade, o filósofo Luiz Felipe Pondé, assumidamente ateu, refuta a ideia de que o livre-arbítrio possa explicar o sofrimento humano, que para ele não dependeria necessariamente da ação do homem, como no fato, por exemplo, de uma criança sofrer de câncer.

Passados mais de 2 mil anos desde o surgimento da questão, quatro especialistas de Ponta Grossa voltam ao problema e respondem: afinal, se Deus é bom, por que existe o mal?

REBELIÃO HUMANA

“‘Deus não existe, ou, se existe, não é amor’. É mais fácil pensar assim, pois desde o início o mundo está cheio de violência e tragédias. Porém, Deus é a fonte de toda bondade, beleza, conhecimento e amor. A humanidade anseia por um antídoto para a dor e alguns creem que a liberdade do sofrimento estaria no Deus bíblico, sendo que Deus jamais prometeu isso. Na Bíblia, a origem da dor está na rebelião da humanidade. Nós ‘matamos’ Deus. Agostinho de Hipona afirma que a origem do mal está no Éden, quando Adão fez uso de sua liberdade marchando para longe de Deus. Desde então, o mal está presente em tudo e atua contra todos, religiosos ou ateus. Assim, a pergunta adequada a ser feita é ‘com quem?’ e não ‘por que?’. A esperança do cristão não consiste em um mundo sem dor, mas em um Deus que nos sustenta em meio à dor. Jesus afirmou: ‘no mundo tereis aflições’ [Jo 16,33] e ‘eis que estou convosco até o fim’ [Mt 28,20]. Ele é a fonte inesgotável de amor que nos sustenta na adversidade e nos impulsiona para o cuidado e compaixão com os que sofrem. Por fim, cremos que o mal não durará para sempre, pois um dia Deus o destruirá [Ap 20, 7-10; 21, 1-7]”

Reverendo Paul Wagner, pastor da 1ª Igreja Presbiteriana de Ponta Grossa

AUSÊNCIA DO BEM

“Para nós, espíritas, Deus é soberanamente bom e justo, e criou leis imutáveis que regem o universo. Uma dessas leis é a da liberdade, que concede a possibilidade de escolha pelo livre-arbítrio. Mas essa lei está relacionada à responsabilidade por nossas ações. Sendo assim, a toda ação cabe uma reação, ou seja, se pratiquei algo que confronte a lei divina, de alguma forma serei conduzido ao reequilíbrio, o que ocorre através do reajustamento pelo amor ou pelo sofrimento. Como somos espíritos ainda endividados por erros de outras vidas, encarnamos em um orbe atrasado, para fazer os reajustes. Precisamos lutar contra os nossos vícios morais e a inclemência da natureza. Inclusive é essa luta que nos propicia o progresso moral e intelectual, que um dia culminará na perfeição relativa, destino de todos os filhos de Deus. Quando falamos de mal e bem, podemos fazer uma analogia. O que é a escuridão senão a ausência da luz? O mal, portanto, é a ausência do bem. Quando todos os espíritos que encarnam na Terra progredirem, o bem vencerá o mal. Deus não cria o mal, somos nós que nos afastamos de suas leis e colhemos, invariavelmente, o resultado dessa rebeldia”.

Edson Luiz Wachholz, secretário da Inter-regional Leste da Federação Espírita do Paraná e 2º vice-presidente da União Regional Espírita – 2ª região

NO LUGAR DE DEUS

“O livro do Gênesis diz que ‘Deus criou tudo e viu que tudo era bom’ [Gn 1,10]. Mas, ao criar o ser humano, Ele lhe deu o livre-arbítrio. O texto sagrado explica tudo isso de forma simbólica, narrando o Paraíso e a árvore da sabedoria do bem e do mal, de cujo fruto o homem não deveria comer. Ou seja, ele deveria saber usar a sabedoria para o bem, visto que foi criado à imagem e semelhança de Deus. Mas o homem quis ocupar o lugar de Deus e introduziu o mal no mundo, visto que Deus não poderia ter criado o mal. ‘Deus é luz, e nele não há treva alguma’, diz 1João 1,5. Segundo Santo Agostinho, o mal seria a ausência de Deus, ou seja, onde não há Deus, habita o mal, assim como as trevas habitam um quarto escuro onde não há luz. Poderíamos ainda questionar por que Deus não intervém nas catástrofes, nas injustiças, no sofrimento, mas, para tudo isso, vale o princípio da autodeterminação. A natureza foi criada na harmonia, mas nós quebramos o equilíbrio e as consequências aparecem em todos os cantos. Deus amou tanto o mundo que deu o seu Filho único, mas a humanidade não aceitou esse amor e matou o Filho de Deus. O Justo morreu pelos pecadores, e hoje assistimos à morte de muitos inocentes também, não pela vontade do Senhor, mas porque o mal continua enraizado em nosso coração. Somente no fim dos tempos teremos a vitória final, como atesta o livro do Apocalipse, e então não haverá mais morte nem dor”

Padre Edvino Sicuro, pároco na Paróquia Nossa Senhora do Monte Claro

É DEUS OU O HOMEM?

“A visão de Deus, para muitos, ainda se restringe ao velho de barba branca apontando e castigando o que fazemos de bom ou ruim. Precisamos superar essa concepção e partir para uma ideia mais madura a respeito de Deus e do que cabe a nós, seres humanos. Afirmar que Deus permite catástrofes naturais seria algo insano, pois isso deveria se voltar ao ser humano como questionamento: o que nós fazemos para que o ‘paraíso’ dado a nós por Ele se transforme em um lugar de tormentas, sejam elas naturais ou humanas? Qual é a nossa relação com a natureza, que a torna violenta, uma vez que a degradamos com tantos feitos irresponsáveis, não cuidando do outro, que é a Criação? É muito menos comprometedor projetar e lançar as responsabilidades para fora de nós, principalmente em relação a Deus. O mundo é falsamente governado por ‘deuses’ – ou endeusados –, ou seja, por seres humanos deificados que chamam para si a autoridade de definir ações destrutivas e doentias para a natureza e para os seus pares, ‘deuses’ que promovem a guerra e a dor, que promovem a doença do corpo e da alma, com todo tipo de ação excludente, como o racismo, o preconceito cultural e religioso, como os crimes envolvendo gênero e sexualidade, nas relações etárias e do mundo do trabalho. É Deus que permite tanto ódio e malefícios ou é o ser humano que os escolhe?”

Donizeti Pessi, professor de filosofia, doutor e pós-doutor em educação, e mestre em teologia

Conteúdo publicado originalmente na Revista D’Ponta #296