Segunda-feira, 16 de Setembro de 2024

D’P Artigo: “Alexandre de Moraes e a filosofia do Estado de Direito”, por Fabio Goiris

2024-08-27 às 10:14
Foto: Reprodução

O advogado Alexandre de Moraes, “alma mater” USP (turma 1990), chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF) em 2017, um pouco por obra do acaso, quando uma inesperada vaga na Corte foi aberta após um acidente aeronáutico envolvendo o então ministro Teori Zavascki. O presidente da República era Michel Temer, e Moraes acabou se tornando uma autoridade judicial competente e centralizadora.

Tendo em mãos inúmeros e controversos inquéritos abertos “ex officio” pelo próprio STF, Alexandre de Moares já determinou centenas de prisões, afastamento de governadores, suspensão de contas em redes sociais, investigações sobre atos antidemocráticos, atuação de milícias e até inquéritos envolvendo milionários de outros países, como Elon Musk, dono da rede social X, por suposta ou real instrumentação dolosa da rede. Muitos desses inquéritos não foram sequer sorteados, mas mantidos com Moraes, sob a justificativa de apurarem possíveis crimes relacionados ao inquérito inicial. Não obstante, a principal justificativa reside na preservação e aplicação, sob Moraes, das medidas cautelares, visto que a maior parte desses inquéritos tramita em sigilo.

Mas é a lógica da filosofia do Estado de Direito que justifica e abona a concentração de poderes nas mãos de Alexandre de Moares. A figura jurídica do Estado de Direito foi criada no século XVIII, contra a monarquia absolutista. O Estado de Direito é visto como um diploma jurídico indispensável para evitar a discriminação e o uso arbitrário da força. Um claro exemplo da aplicação do Estado de Direito (aplicação quase heroica, se diria) foi a laudativa intervenção de Moraes, após o dia 8 de janeiro de 2023, quando apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro, inconformados com a eleição do presidente Lula, invadiram as sedes dos três poderes. Investigações recentes, baseadas em delações premiadas, demonstraram que se tratou de um abjeto golpe de Estado.

Não é por acaso que o célebre juiz argentino Luís Moreno Ocampo escreveu que o arquétipo jurídico desenvolvido por Moraes pode servir de exemplo para as democracias do mundo: “O Brasil pode mostrar ao mundo como reagir politicamente a ataques contra a democracia. Por isso, acredito que o governo Lula tem de criar um consenso sobre isso [a permanente manutenção da democracia]. Sei que é difícil, porque as redes sociais estão tornando a sociedade muito fragmentada.”

Nesse sentido, Alexandre de Moraes vem afirmando que milícias digitais atuam para desacreditar o Judiciário e as eleições. “Não podemos cair nesse discurso fácil de que regulamentar as redes sociais é ser contra a liberdade de expressão. Isso é um discurso mentiroso e que pretende propagar e continuar propagando discurso de ódio. O que não pode no mundo real, não pode no mundo virtual”, afirmou.

Historicamente, no Brasil, a partir da Constituição de 1824 (e até 1889), foram reconhecidos nada menos que quatro poderes políticos: 1) Legislativo; 2) Moderador; 3) Executivo; e 4) Judicial. O Poder Moderador foi exercido discricionariamente por dois imperadores: Dom Pedro I e Dom Pedro II. Mas o longo período de autoritarismo do Poder Moderador (como a criação da tristemente célebre Guarda Nacional, em 1831, um grupo paramilitar que colocava o próprio Exército em segundo plano) e os questionamentos sociais contra a realeza conduziram ao colapso do regime monárquico e ao advento da República, extinguindo-se o Poder Moderador.

Passados 131 anos de vida republicana, a direita brasileira tem percebido que era o momento de trazer à tona a longínqua figura do Poder Moderador, aquela da família imperial brasileira. O sonhado quarto poder do Estado (o poder das Forças Armadas) teria por escopo “garantir” estabilidade aos outros três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário). Assim, em meio aos intensos atos antidemocráticos de 2021 e 2022 espalhados pelo país, o conservadorismo político insistia na tese de que as Forças Armadas poderiam encarnar legalmente o Poder Moderador. A proposição, numa clara atmosfera “déjá vu”, era de que, conforme o Artigo 142 da Constituição de 1988, as Forças Armadas poderiam, sob o manto legal do Poder Moderador, introduzir a intervenção militar e a ruptura institucional.

De outra parte, assustado com um suposto retorno do Poder Moderador pelas mãos do conservadorismo, o Partido Democrático Trabalhista (PDT) ajuizou acertadamente uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI). Corria o ano de 2020. Alegava o partido que é inconstitucional qualquer interpretação que possibilite a atuação das Forças Armadas em detrimento da autonomia de quaisquer dos outros poderes. Assim, o desfecho se deu na sessão virtual do dia 8 de abril de 2024. Em resposta à petição do PDT, os 11 ministros do STF firmaram em unanimidade o entendimento de que a Constituição não prevê o papel das Forças Armadas como Poder Moderador, afastando qualquer interpretação de que as Forças Armadas exerçam o Poder Moderador entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.

Derrotada a tese militarista da volta do Poder Moderador, resta dizer que Alexandre de Moraes continua tendo a seu favor a filosofia do Estado de Direito e os princípios republicanos. Não se trata de nenhum poder ditatorial, como pretende fazer crer o conservadorismo político. O Estado de Direito se fundamenta no Direito Natural, que, por um lado, desde milênios, vem se opondo ao uso arbitrário do poder, e, por outro, lutando contra a “guerra de todos contra todos”, como afirma Hobbes, no seu “Leviatã”.

Fazer prevalecer a democracia sobre a violência das ações autoritárias e das falsas narrativas (“fake news”) sobre as urnas eletrônicas foi o grande corolário da cruzada de Alexandre de Moraes. Foi também a vitória da ética na política e da persistência e perseverança na defesa dos valores democráticos. Sobre esse tema, Abraham Lincoln, o recatado advogado interiorano do Kentucky (EUA), disse: “O campo da derrota não está povoado de fracassos, mas de homens que tombaram antes de vencer.”

Fabio Anibal Goiris é professor da UEPG, graduado em Direito, mestre em Ciência Política pela UFRGS e autor do livro “Estado e política: a história de Ponta Grossa”

Conteúdo publicado originalmente na Revista D’Ponta #301