Quinta-feira, 26 de Dezembro de 2024

D’P Artigo: “O que o Big Brother diz sobre o outro e sobre nós”, por Andreza Cristina Baroni

2024-05-13 às 11:16
Foto: Divulgação

Em 2002, o Brasil assistiu à primeira temporada de um programa que acabaria por alterar e, de certa forma, moldar o modo como consumimos entretenimento: o Big Brother Brasil, versão brasileira do “reality show” inventado pelo produtor holandês John de Mol. Vinte e dois anos depois, a forma como consumimos o programa mudou, largamente afetada pela internet e pelo seu poder de repercutir o conteúdo gerado dentro da casa e de dar voz ao grande público. Mas como se deu essa mudança?

Não é preciso dizer que a inspiração por trás do programa está na obra “1984”, escrita por George Orwell em 1948. Na trama original, o Grande Irmão é a entidade que tudo vê, em um futuro distópico, controlando e analisando cada passo dos membros da sociedade para garantir que a ideia de ordem dessa sociedade seja mantida. Para isso, o Grande Irmão, representado pelos agentes de governo, punem e isolam aqueles considerados dissidentes, seja para moldá-los aos valores sociais considerados corretos, seja para assegurar que eles desapareçam caso se neguem a fazê-lo.

Contudo, diferente da história de George Orwell, o “reality show” inverte a ideia do Grande Irmão. Aqui, não são uns poucos que assistem e controlam a maioria, mas sim alguns participantes, cuidadosamente selecionados para garantir entretenimento, que voluntariamente cedem a sua imagem, o seu tempo e detalhes da sua vida íntima para que o público possa assisti-los, acompanhá-los e, de certa forma, controlar o que se passa dentro da chamada “casa mais vigiada do Brasil”. E tudo isso pela promessa de fama e, eventualmente, uma quantia de dinheiro capaz de mudar a vida do cidadão brasileiro médio.

A partir do momento que os participantes entram na casa, nós nos tornamos os seus juízes. Recebemos o poder de julgá-los segundo os nossos critérios pessoais. Recompensamos os atos que consideramos corretos com votos que permitem a permanência dos participantes na casa e os aproximam do prêmio final, e punimos os mínimos erros sem direito aos princípios básicos de contraditório e ampla defesa.

No início dos anos 2000, quando o programa estreou, essa balança de recompensas e punições ficava limitada à televisão e a alguns portais on-line. Hoje, contudo, graças à internet e às redes sociais, o manuseio da balança foi democratizado.

Qualquer pessoa pode comentar e julgar publicamente o que os participantes estão fazendo dentro da casa. E isso, obviamente, tem um lado positivo. Primeiro, porque é mais fácil premiar aqueles comportamentos que a nossa sociedade considera positivos, seja por meio do prêmio em dinheiro, seja por meio do aumento do número de seguidores dos participantes mais queridos pelo público, o que lhes garante oportunidades de trabalho com grandes patrocinadores logo que saem da casa.

Segundo, porque permite que questões sociais importantes tratadas e vividas dentro da casa possam ser observadas através de exemplos reais, permitindo que lições sociais possam ser aprendidas por qualquer pessoa.

Não é raro nos depararmos com cenas e falas preconceituosas por parte dos jogadores. E, do mesmo modo, não é raro que esse tipo de comportamento gere um debate fora da casa e na internet, que nos faz, de certa forma, crescer e aprender a tratar melhor o outro e a respeitar as diferenças. E, em um país onde os índices de violência e desrespeito contra minorias são altos, a visibilidade que o Big Brother dá a essas pautas é de extrema importância.

O problema está no outro lado dessa balança: o poder que temos de punir comportamentos que consideramos errados. Se antigamente essa punição era feita por meio de conversas entre amigos e familiares, e de votações para que os participantes saíssem nos famosos paredões, hoje, graças à internet, em especial às redes sociais, essa punição ganha contornos mais cruéis.

Participantes que apresentam falas e comportamentos considerados minimamente problemáticos são imediatamente atacados nas redes sociais em conteúdos que viralizam e atingem não apenas a eles, mas também os seus familiares e amigos. A chamada “cultura do cancelamento” garante que a vida dessas pessoas, e daqueles que estejam ao seu redor, seja muito prejudicada.

É claro que alguns comportamentos apresentados dentro da casa são de fato problemáticos, e, a depender do caso, poderiam ser investigados em âmbito criminal. É claro também que comportamentos maldosos e preconceituosos merecem ser punidos pelos meios corretos e legais. O problema acontece quando os ataques ultrapassam os limites do programa e atingem a esfera pessoal dos participantes e de suas famílias. E, mais do que isso, quando ultrapassam o limite da crítica e se tornam, eles também, desrespeitosos e, eventualmente, ilegais.

Não por outro motivo, as celebridades que passaram a participar do programa após a fatídica temporada da cantora Karol Conká já entram na casa preocupadas com cada passo e com cada uma de suas ações, para que não sejam canceladas. Este ano, uma das participantes chegou a desistir do jogo nas primeiras semanas, após atingir ao seu limite emocional e psicológico. Entre os motivos do seu estado emocional, estava o medo de ser “cancelada na internet”.

A posição de juízes em que o Big Brother nos coloca, e a falsa sensação de anonimato e impunidade trazida pela internet, tendem a deixar as pessoas à vontade para agir como se o mundo on-line fosse uma terra sem lei, e como se nós mesmos fôssemos incapazes de cometer erros.

Sem entrar na questão legal de violação da imagem, voz, nome e reputação desses participantes, o que devemos ter em mente é que o Big Brother, antes de tudo, deve servir como um espelho da nossa sociedade: diversa, plural e com variadas questões positivas e negativas que acompanham essas características. Cabe a nós, ao olhar para esse espelho, recompensar de forma justa os heróis, e aprender com os vilões, para que não nos tornamos, nós mesmos, algozes.

Andreza Cristina Baroni é graduada em Direito pela UFPR e pós-graduada em Direito Civil e Empresarial pela PUC-PR e em Propriedade Intelectual e Comércio Eletrônico pela Universidade Positivo.

Conteúdo publicado originalmente na Revista D’Ponta #300