Quarta-feira, 02 de Outubro de 2024

Enfoque D’P: Arquitetura hostil – Você não é bem-vindo

2024-05-19 às 16:00

Embora incipientes, exemplos da chamada “arquitetura hostil” já podem ser vistos em diversos locais do Centro de Ponta Grossa. Ainda dá tempo de empresários e poder público repensarem o uso desses dispositivos que agridem o espaço urbano e segregam os mais diversos grupos sociais

por Michelle de Geus

Os desafios para cerca de 100 mil ponta-grossenses que utilizam o transporte coletivo todos os dias começam já no ponto de ônibus. Os novos modelos instalados nos últimos anos não têm bancos para descanso, apenas uma barra para as pessoas se encostarem. Além disso, não são fechados nos fundos e nas laterais para proteger do sol, do vento e da chuva. Mesmo os que têm assentos razoáveis também não contam com uma cobertura suficiente para a proteção. Em ambos os casos, o objetivo é garantir a mínima permanência de pessoas no local, graças ao desconforto, e evitar que pessoas em situação de rua usem o local como abrigo. No entanto, trazem como consequência prejuízos para todas as pessoas que dependem do transporte coletivo para estudar ou trabalhar. Esse é apenas um exemplo da chamada arquitetura hostil.

A arquiteta e urbanista Gabriela de Lima Manique Barreto, membro da equipe de engenharia da Fundação Municipal de Saúde de Ponta Grossa e mestranda em Gestão de Território pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), explica que a arquitetura hostil é, em essência, a tradução em termos urbanos da sensação de não ser bem-vindo nos espaços públicos e privados da cidade. “Ela é o uso da arquitetura e do design em função do controle das classes sociais tidas como perigosas e indesejáveis, especialmente da população em situação de rua e vulnerabilidade social, impedindo a sua permanência e delimitando o espaço acessível a elas”, define, citando como exemplos o uso de pedras e objetos pontiagudos sob áreas que possam se tornar abrigos; barreiras em bancos que impeçam uma pessoa de se deitar; assentos desconfortáveis para impedir a permanência; arames farpados, grades e muros no perímetro de praças e até mesmo gotejamento de água em intervalos estabelecidos sob marquises.

Segregação social

Na visão da urbanista, a arquitetura hostil é insuficiente para resolver a complexa questão das pessoas em situação de rua e tem como consequência o surgimento de espaços mais inseguros e hostis a toda a população. “Essa prática reforça a segregação social, transformando espaços públicos em locais exclusivos e seletivos, em vez de inclusivos e acolhedores. Não é possível ignorar que as estratégias arquitetônicas hostis são, quase que exclusivamente, implementadas em áreas urbanas onde as classes mais abastadas predominam”, assinala.

Gabriela ressalta que Ponta Grossa têm exemplos clássicos de arquitetura hostil, como o prédio dos Correios, na avenida Doutor Vicente Machado, esquina com rua Augusto Ribas, onde os canteiros vazios são protegidos por estruturas de ferro para que ninguém use o espaço para dormir. Outro exemplo é a Caixa Econômica Federal, na rua Coronel Francisco Ribas, que tem diversos fechamentos em gradis para bloquear o acesso das pessoas em situação de rua que circulam no entorno. O Banco Itaú, na rua Doutor Colares, utilizou a mesma técnica para isolar a sua laje com o objetivo de reduzir a permanência de pessoas do local.

“A arquitetura hostil reforça a segregação social, transformando espaços públicos em locais exclusivos e seletivos, em vez de inclusivos e acolhedores”, Gabriela de Lima Manique Barreto, arquiteta e urbanista

Uma das soluções apontadas pela arquiteta seria a requalificação urbana dos espaços públicos através de propostas de ocupação totalmente centradas nas pessoas e em suas necessidades, conhecida como “placemaking”. “Em Chicago, uma das maiores cidades dos Estados Unidos, que tem enfrentado o mesmo problema do número crescente de pessoas em situação de rua, o município tem desenvolvido campanhas municipais de placemaking oferecendo cursos para os interessados em construir uma cidade melhor”, menciona, acrescentando que outra intervenção de sucesso é o Precollinear Park, na cidade italiana de Turim, onde uma antiga linha de bonde abandonada e marginalizada foi transformada em área de lazer.

Afasta até quem é bem-vindo

No entender da arquiteta e urbanista Bianca Camargo Martins, que atende clientes de Ponta Grossa e região, a arquitetura hostil é aquela que, em vez de acolher e integrar, cria ambientes que geram desconforto e isolamento com a intenção de manter distantes os grupos considerados indesejáveis. Ela observa que os maiores prejudicados são os mais vulneráveis, mas lembra que a concepção de ambientes desagradáveis afasta até quem é bem-vindo. “Entendo a preocupação com o uso dos espaços ao redor das lojas, mas é fundamental repensar a abordagem. Ao tentar impedir que pessoas em situação de rua sentem-se ou durmam sob as marquises, os empresários criam barreiras que impedem o acesso de outros grupos sociais também”, comenta, citando que o design hostil pode atingir a acessibilidade de idosos, crianças, PCDs, mulheres grávidas e outros grupos sociais.

“Ao impedir que pessoas em situação de rua sentem-se ou durmam sob as marquises, os empresários criam barreiras que impedem o acesso de outros grupos sociais também”, Bianca Camargo Martins, arquiteta e urbanista

Bianca defende que, em vez de recorrer à arquitetura hostil, é possível buscar soluções mais humanas. “Não me parece prático investir em elementos que, psicologicamente, vão gerar um afastamento das pessoas das lojas quando a principal intenção deveria ser justamente atrair. É melhor considerar investir em designs que incentivem o uso adequado do espaço, como assentos confortáveis e iluminação adequada”, indica. Outra sugestão que a urbanista deixa para os empresários é se engajar com a comunidade local e promover um diálogo com o poder público para encontrar soluções colaborativas que atendam às necessidades de todos. “A arquitetura pode ser uma ferramenta para construir comunidades mais inclusivas e acolhedoras. É essencial discutir, repensar e transformar essas abordagens para criar ambientes mais humanos e acessíveis”, enfatiza.

Empresários são parte da solução

De acordo com a urbanista, diversas cidades ao redor do mundo estão embarcando em iniciativas de revitalização urbana e transformando espaços públicos em ambientes acolhedores, com assentos confortáveis, áreas verdes e iluminação adequada. “Essas ações visam não apenas criar ambientes mais humanos, mas também promover a interação social e a coesão comunitária. As empresas, por sua vez, têm assumido um papel ativo nesse cenário”, frisa, destacando que uma prática comum entre os empresários é investir em treinamento para as suas equipes, enfatizando a responsabilidade social e o respeito ao ambiente urbano. “Além disso, há uma tendência crescente de colaboração com arquitetos e urbanistas para repensar os espaços ao redor de estabelecimentos comerciais, priorizando soluções que beneficiem tanto os negócios quanto a comunidade”, acrescenta, citando que essa abordagem proativa transforma os espaços urbanos, promovendo a inclusão, a conectividade e a qualidade de vida.

Espaço urbano piorado

Na visão do engenheiro civil e mestre em planejamento e projeto urbano Carlos Mendes Fontes Neto, os principais problemas da arquitetura hostil estão relacionados à sua implicação social. “O fato de restringirmos o acesso ou a permanência de algumas pessoas em determinado local acaba por destacar a segregação social que notamos nas nossas cidades”, salienta, observando que esse fenômeno pode levar a um processo de gentrificação, quando áreas urbanas periféricas são ocupadas por pessoas e empresas mais ricas, transformando o local em uma região nobre e levando à expulsão dos antigos moradores.

“A arquitetura hostil estimula os habitantes a se isolarem em condomínios, shoppings e outros locais, colaborando para perpetuar o sentido perverso de desistir da cidade”, Carlos Mendes Fontes Neto, engenheiro civil

Outro efeito da inserção de elementos cujo design visa garantir a segregação social, segundo Fontes Neto, é a perda de qualidade do espaço urbano e o aumento da sensação de insegurança. “A arquitetura hostil acaba por instalar a ‘cultura do medo’ e estimula, cada vez mais, as pessoas a se isolarem em condomínios fechados, shoppings e outros empreendimentos, colaborando para perpetuar o sentido perverso de desistir da cidade”, observa. “Outros problemas são a diminuição da vitalidade urbana, ausência de convivência no espaço urbano e a consolidação da ideia de uma cidade cada vez mais monótona, solitária, hostil e insegura.”.

Cidade adoecida

Para Fontes Neto, a arquitetura hostil revela, na verdade, a falta de atuação do poder público. “O desenvolvimento urbano está ligado à redução da marginalização, e a exigência de políticas públicas que mitiguem a desigualdade social deve ser prioridade nas cidades”, ressalta, acrescentando que uma cidade é composta por todos os seus habitantes e que cada um deles tem um papel importante para impulsionar a economia. “Além disso, a cidade ‘adoece’ com o declínio do espaço público, com benfeitorias malfeitas, calçadas ruins, equipamentos urbanos ineficientes, mobiliário urbano de má qualidade, ou mesmo inexistente em alguns lugares, criando a impressão de que não vale a pena circular ou ocupar as ruas”, detalha, citando que cidades desenvolvidas e que apresentam alto índice de desenvolvimento humano cada vez mais se voltam para questões relativas a mobilidade e acessibilidade, procurando permitir que os habitantes ocupem e se apropriem do espaço público e dele desfrutem com conforto.

Lei Padre Júlio Lancellotti

“É imprescindível criar políticas públicas efetivas que trabalhem essas questões de maneira adequada e empreender esforços de criar cidades verdadeiramente inclusivas e acolhedoras para todos”, afirma Fontes Neto, citando que uma das respostas a esse desafio foi a regulamentação da Lei Padre Júlio Lancellotti (Lei nº 14.489/2022), em dezembro de 2023. A lei proíbe o uso do design hostil no espaço urbano para expulsar segmentos indesejados e garante a toda a população a permanência e o uso dos espaços públicos. O Projeto de Lei (PL) começou a ser elaborado já em 2021, após Lancellotti quebrar pedras instaladas sob viadutos de São Paulo (SP), em protesto contra uma ação proposta pela Prefeitura da cidade, que visava expulsar as pessoas em situação de rua daqueles locais.

Conteúdo publicado originalmente na Revista D’Ponta #300