Domingo, 17 de Novembro de 2024

Psicólogas de PG desvendam as causas do consumismo e as formas de enfrentá-lo

2024-11-17 às 15:07
Foto: Reprodução

por Edilson Kernicki

O filósofo polonês Zygmunt Bauman (1925-2017) defendia que a sociedade contemporânea é basicamente formada por pessoas consumidoras. Mas a “sociedade do consumo” é vista de maneira crítica, por se considerar que a produção de bens e serviços é excessiva em relação à demanda dos consumidores. Para Bauman, o consumo em excesso refletia na despersonalização dos indivíduos, por dificultar a sua compreensão como seres humanos e não como mercadorias. Outras consequências negativas oriundas do consumo desenfreado são o endividamento e o aparecimento de doenças como a ansiedade e a depressão.

De acordo com a psicóloga Letícia Carneiro Abrão, que atende em Ponta Grossa, uma das principais características do consumismo não é necessariamente o preço dos objetos adquiridos, mas a frequência. “O consumismo pode ser definido como o ato de comprar de forma compulsiva e excessiva, caracterizado por um aumento na liberação de dopamina, neurotransmissor que atua no sistema de recompensa e prazer do cérebro, proporcionando uma sensação de gratificação imediata. Esse comportamento possui um potencial aditivo”, explica.

Mesmo assim, a alta exposição a conteúdos relacionados a itens de luxo exerce impacto sobre alguém com tendências ao consumismo, pois quem adquire esses itens é frequentemente visto com respeito e admiração, obtendo status de autoridade nos segmentos de consumo. “Na busca por essa aprovação, é possível que pessoas com tendência a gastar excessivamente fiquem mais vulneráveis e acabem caindo na armadilha da ostentação”, observa a psicóloga.

Nessa seara da influência, também fica difícil separar o essencial do supérfluo, pois somos alvos de constante estímulo ao consumo, notadamente pelo avanço tecnológico e a facilidade das compras no meio digital. Letícia define como essencial o que é necessário à sobrevivência e ao bem-estar: alimentação, moradia, saúde, transporte e educação. Lazer e entretenimento, roupas, acessórios e produtos de luxo são supérfluos. “Vale lembrar que nem todo gasto supérfluo caracteriza consumismo. O que define o consumismo são comportamentos excessivos e os prejuízos que deles resultam”, ressalta.

“Nem todo gasto supérfluo caracteriza consumismo. O que define o consumismo são comportamentos excessivos e os prejuízos que deles resultam” (Letícia Carneiro Abrão, psicóloga)

Transtorno ou desvio?

Não há uma resposta exata se o consumismo está mais para um transtorno psicológico ou se para um desvio comportamental temporário. Letícia costuma classificar o consumismo em três categorias. A primeira se refere apenas a um hábito adquirido. A segunda é um sintoma presente em transtornos psicológicos. “É comum a compra compulsiva em transtornos que afetam funções executivas, como autocontrole e tomada de decisão. Um exemplo é o Transtorno de Deficit de Atenção e Hiperatividade [TDAH]”, comenta. A terceira categoria se refere ao Transtorno do Exagero – o ato de comprar compulsiva e excessivamente, que resulta em uma série de prejuízos em diferentes áreas da vida e que leva a um alto nível de dependência.

Letícia considera os deficits no repertório de regulação e autocontrole um dos fatores que contribuem para o comportamento consumista, junto à facilidade de compra e a forte influência midiática – sobretudo nas redes sociais e em anúncios que adotam estratégias cada vez mais sofisticadas para gerar desejo, pressão social e comparação.

Prazer e… culpa

Conforme a psicóloga Karen Cristina Martins, que também atende em Ponta Grossa, o cérebro humano seguidamente age no “modo automático” para poupar energia e segue hábitos repetitivos sem pensar muito. Nesse “modo automático”, usamos vieses cognitivos – truques mentais que ajudam a tomar decisões rápidas e fáceis. “Se usamos sempre um cartão de crédito, o efeito de ancoragem – ver o saldo disponível – pode nos levar a gastar mais sem pensar. Esses vieses simplificam a vida, mas às vezes nos fazem tomar decisões impulsivas e não muito racionais”, exemplifica.

De acordo com Karen, o viés de gratificação imediata nos faz buscar prazer instantâneo. Na ânsia pela satisfação rápida, compramos coisas que nos dão prazer imediato, mesmo sem necessidade ou sem poder pagar. Além disso, esse comportamento pode estar associado a grande instabilidade emocional, que causa mudanças rápidas e intensas de humor, e dificultam o controle de impulsos e desejos. Essa instabilidade é comum em transtornos de humor, como depressão e transtorno bipolar.

“Vivências situacionais, como estresse ou mudanças na vida, podem aumentar a tendência ao consumismo impulsivo” (Karen Cristina Martins, psicóloga)

Na depressão, sentimentos profundos de tristeza e vazio podem desencadear compras impulsivas em busca de alívio, que é temporário e pode gerar culpa – e, consequentemente, agravar o quadro depressivo. Karen acrescenta que o comportamento consumista pode ainda estar associado a hábitos prejudiciais como o uso excessivo de álcool ou drogas, principalmente se a pessoa enfrenta dificuldades financeiras.

Já no transtorno bipolar, caracterizado por mudanças extremas de humor que alternam entre euforia (ou mania) e depressão. “Durante a mania, uma pessoa pode se sentir excessivamente otimista e impulsiva, levando a decisões financeiras imprudentes, como gastos excessivos. Essas decisões podem ter consequências negativas, quando o humor muda para um estado depressivo. Além dos gastos impulsivos, essa busca por alívio imediato pode levar a comportamentos nocivos adicionais, como o uso de substâncias”, ilustra.

Karen adverte que, embora o comportamento consumista possa se relacionar a transtornos de humor, não significa que todos que consomem em excesso tenham um transtorno mental. “É importante entender os motivos individuais por trás do consumo excessivo e gerenciá-lo sem presumir automaticamente a presença de uma condição clínica”, frisa.

DICAS PARA ENFRENTAR O CONSUMISMO

→ Praticar “mindfulness” (ferramenta que aplica técnicas como meditação e respiração profunda)
→ Manter diário de compras
→ Estabelecer um orçamento
→ Evitar a gratificação imediata
→ Identificar “gatilhos”, como redes sociais ou aplicativos, a disponibilidade de cartões de crédito ou a saída para passeios com grandes quantias de dinheiro
→  Praticar exercícios físicos regularmente
→ Manter o sono regulado
→ Ajustar o estilo de vida financeiro
→ Optar pelo débito em vez do crédito
→ Separar os gastos essenciais dos supérfluos

Conflitos familiares e conjugais

Outro aspecto problemático do consumismo, segundo Letícia, reside nos conflitos familiares e conjugais que resultam desse tipo de comportamento. “A pessoa pode mentir para evitar conflitos e desaprovação, e isso pode levar ao afastamento de áreas importantes da vida, como trabalho, relacionamentos afetivos e laços familiares, devido ao foco excessivo no consumo e no tempo dedicado a esse comportamento”, explica.

O consumismo pode afetar as relações familiares e conjugais. A pessoa consumista pode mentir para evitar brigas e desaprovação, podendo levar ao afastamento de áreas importantes, como trabalho, relacionamentos afetivos e família

As duas psicólogas concordam que os efeitos do consumismo à saúde mental envolvem aumento dos níveis de estresse, ansiedade e angústia, relacionados ao endividamento. Também é consenso entre elas que há uma diminuição de autoestima, pela culpa e vergonha de não dar conta de pagar o que compra, o que gera um ciclo vicioso, afetando os relacionamentos interpessoais e o desempenho profissional.

Sinais de alerta

Os sinais de alerta podem se manifestar diante do excesso de tempo dispensado em sites ou aplicativos de compra, que refletem em aumento gradativo dos gastos, acompanhados por culpa ou arrependimento pós-compras. “Há uma necessidade de mentir ou omitir informações sobre os gastos e as compras são usadas como uma forma de aliviar sentimentos de tristeza, ansiedade e estresse”, pontua Letícia. Faturas altas do cartão de crédito, o “estouro” do limite da fatura e a preocupação constante com dinheiro também merecem atenção. “Se você notar esses sinais, é importante oferecer apoio e encorajar a busca por ajuda profissional, se necessário”, orienta Karen.

Como enfrentar

A redução da impulsividade e a tomada de decisões financeiras mais equilibradas podem ser alcançadas com o “mindfulness”, ferramenta da psicologia moderna que aplica técnicas como meditação e respiração profunda para ajudar a gerenciar o estresse, promover a regulação emocional e apoiar decisões racionais. “Além disso, manter um diário de compras, criar um orçamento e desafiar a gratificação imediata são práticas úteis”, recomenda Karen.

Adicionalmente, Letícia orienta a identificar possíveis “gatilhos”, como o acesso a determinadas redes sociais ou aplicativos, a disponibilidade de cartões de crédito ou sair para passeios com grandes quantias de dinheiro. A psicóloga aconselha, ainda, adotar a prática constante de exercícios físicos, manter um sono regulado e praticar relaxamento como forma de controlar as emoções. Ela também sugere ajustar o estilo de vida financeiro e optar pelo débito em vez do crédito, estabelecer um orçamento e separar gastos essenciais dos supérfluos. “Se tiver dificuldades para gerenciar as suas finanças sozinho, peça a um cônjuge, parceiro ou familiar de confiança para ajudar na administração do dinheiro. Caso essas medidas não sejam suficientes, considere buscar tratamentos cognitivo-comportamentais voltados para compras impulsivas”, indica.

A importância da terapia

Letícia nota que os pacientes que passaram pela terapia para superar o consumismo conseguiram quitar dívidas, deixar de usar a compra como regulação emocional e adotar novas estratégias para encontrar bem-estar e prazer. “Eles passaram a atender as suas necessidades básicas e a economizar para realizar sonhos de longo prazo. Além disso, houve um aumento significativo no senso de autoeficácia, com os pacientes acreditando mais em seu próprio potencial para manter um consumo saudável”, diz. Eles também aprenderam a identificar e evitar armadilhas financeiras, respeitar os seus limites e reconhecer vulnerabilidades, o que culminou com a redução do estresse e ansiedade ligados ao consumo, e melhora na qualidade dos relacionamentos.

De acordo com a psicóloga, o consumismo pode deixar de ser um problema significativo quando são eliminados os hábitos prejudiciais e inseridos comportamentos mais saudáveis. O acompanhamento terapêutico contribui para que a pessoa desenvolva autonomia, senso de realização pessoal e habilidades para gerir eficazmente as suas finanças.

Karen ressalta que o desafio de gerenciar o consumismo decorre da complexidade do comportamento humano, que é influenciado por fatores múltiplos, como problemas emocionais, baixa autoestima, estresse e pressões socais. “Essas questões são complexas, tornando o controle desse comportamento um processo contínuo. Vivências situacionais, como estresse ou mudanças na vida, podem aumentar a tendência ao consumismo impulsivo e, mesmo após um período de gestão bem-sucedida, recaídas podem ocorrer”, conclui.

Conteúdo publicado originalmente na Revista D’Ponta #303