Quinta-feira, 20 de Fevereiro de 2025

Artigo: “A ‘nova classe média'”, por Oliveiros Marques

2025-02-16 às 10:14

Imagine que você seja um militante de esquerda ou centro-esquerda. Não, não precisa estar com a estrela do PT no peito, vestindo uma camiseta do Che Guevara com a frase “Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás” – que a gente nem sabe se é dele mesmo –, nem ter sobre a cabeça um boné do MST, tampouco desfilar com um bottom do Marx, do Lenin, do Mao ou do Stalin, se for de sua preferência. Você apenas é uma pessoa que defende a construção de uma sociedade mais justa, mais igualitária, sem preconceitos e discriminações, fundada no humanismo e na solidariedade.

Sim, se você é evangélico, deve se lembrar: você defende exatamente o que está escrito na Bíblia, aquilo que Jesus Cristo defendia e, aliás, pelo qual foi morto.

Então, você é esse militante, que acredita nessas ideias, e vê quase metade da população brasileira refratária a elas. Na verdade, surda a qualquer outro assunto que não sejam aqueles que vertem em bueiros depois das chuvas nos grupos de WhatsApp da extrema-direita brasileira. Como romper essa membrana que impede que ideias mais conectadas com a realidade e com um futuro desejado pela maioria cheguem ao cérebro dessas pessoas?

A grande verdade é que eu também não sei. Mas pistas surgem quase todos os dias. E, como não somos gênios, a técnica da tentativa e erro pode ser um caminho até encontrarmos um meio de provocar esse rompimento. Porque diagnóstico, todo mundo faz, o tempo todo – dos mais experts aos mais espertos. Então, como não somos nem um, nem outro, que tal testarmos um caminho?

Por exemplo, tomemos o estudo da Quaest publicado na edição impressa de hoje de O Globo. Ele traz alguns elementos que podem ser interessantes para a construção de um discurso voltado à disputa política com aquela parcela da população ensurdecida, mas que ainda não perdeu neurônios. Essa parcela pode, sem dúvida, garantir um avanço para a esquerda ou centro-esquerda.

Segundo o estudo, 98% da chamada “nova classe média” – ou seja, quase a totalidade – defende que é obrigação do Estado oferecer educação e saúde gratuitas para todos. Mesmo que não concordemos com o termo “nova classe média”, encaremos esse recorte como uma parcela significativa da população – boa parte dela ascendeu socialmente a partir das políticas dos governos de esquerda. Essas pessoas defendem educação e saúde gratuitas para todos, exatamente como você, militante de esquerda ou centro-esquerda. E, se isso é o oposto do que defendem seus adversários de extrema-direita, me parece meio óbvio que você diga a essas pessoas que, com a extrema-direita no poder, elas não conquistarão esses direitos.

Outro dado, para ficarmos em apenas dois exemplos: 96% dessa “nova classe média” acreditam que o governo deveria se responsabilizar mais para garantir boas condições de vida a todos. Ora bolas, que espaço é esse para insistir na história de empreendedorismo? Esse desejo existe, sim, porque foi construída uma opinião favorável à meritocracia em parte da população. Mas a disputa política aqui me parece clara: com a extrema-direita no poder, é cada um por si. E aí, ganha quem tem mais dinheiro – o que, sejamos sinceros, não será o seu caso, meu querido e minha querida dessa “nova classe média”.

Acredito que o espaço para a luta política existe. Talvez falte um pouco de direção, organização, sistematização, atuação coletiva, não sei. Mas que há campo a semear e condições climáticas boas para colher, disso eu tenho certeza.

Oliveiros Marques é sociólogo, publicitário e comunicador político.