O mundo católico está triste. A morte do Papa Francisco deixa um imenso vazio. Sua humildade e carisma parecem insubstituíveis. Mas é na sua vocação política que se percebe a dimensão do chamamento que Jesus deu, inicialmente aos apóstolos, e certamente a Francisco, de anunciar a palavra e o reino de Deus. Os papas precisam enfrentar situações políticas e sociais complexas. Afinal, o Papa é ex officio soberano e chefe de Estado do Vaticano a partir da década de 1920.
Desde os primórdios do cristianismo, São Pedro tem sido considerado o fundador da igreja católica e o primeiro Papa. Pedro morreu crucificado, no ano 67, sob o governo do imperador Nero, no famigerado ‘circo de Nero’, nas proximidades do atual Vaticano. Conta-se que Pedro pediu para ser crucificado de cabeça para baixo, para não se igualar a Jesus.
Dentro e fora da igreja o Papa Francisco tem enfrentado um universo de oposições e críticas, por uma razão muito simples: estava iniciando uma espécie revolução sócio-política. É inevitável que quem está na alta cúpula da política, quem cultiva altos ideais políticos, como fez o Papa Francisco, venha submergir até os escalões mais baixos da política. Este processo envolve diplomacia, negociações e confrontos. Por exemplo, Francisco ordenou uma ‘limpeza’ do Banco do Vaticano, incentivou a investigação e penalização das ações de corrupção envolvendo as finanças da Santa Sé. Neste contexto, na concepção do Papa, a esfera espiritual nunca está separada do âmbito temporal. Isto já era perceptível quando Bergoglio morava no seu país onde já existia o entendimento de que a religião deveria assumir uma espécie de tutela sobre a ordem política e social. As favelas 20 e 21, criados por ele quando era arcebispo de Buenos Aires, hoje levam o seu nome.
De outra parte, o Papa Francisco promoveu uma grande mudança na filosofia da igreja. Trata-se do entendimento de que a igreja católica estava, historicamente, muito ligada ao Ocidente, ao ‘novo mundo ocidental’, isto é, ao neoliberalismo econômico anglo-saxão. Francisco iniciou um movimento para distanciar a Igreja Católica desse Ocidente sectário, conservador e utilitarista. Sua primeira investida foi pressionar indiretamente os Estados Unidos a não bombardear a Síria, ainda durante a administração de Barack Obama. O professor italiano Loris Zanata reforça o motivo por trás desse posicionamento papal: “Ele conseguiu bloquear efetivamente o bombardeio e, depois, confiou a proteção de sírios católicos aos russos”, destaca.
Para o pontífice argentino, a religiosidade de cada cultura existente neste mundo representa um elemento fundamental. A religiosidade é mais importante do que as estruturas políticas ocidentais, incluindo a democracia liberal. Francisco vinha observando o Ocidente como um espaço secularizado e “descristianizado”, que perdeu a conexão religiosa ainda presente em muitas sociedades não ocidentais. Sobre as recentes políticas elaboradas por Donald Trump o Papa disse: “Uma pessoa que quer construir muros e não pontes não é cristã”. Um dos legados de Francisco foi a defesa da cooperação entre as grandes religiões monoteístas, como o cristianismo, islamismo e judaísmo.
Francisco viajou por vários países não pertencentes ao Ocidente democrático liberal, como Mongólia, Mianmar, Indonésia e Egito. Assim, a visão de Francisco foi de premonição, ou seja, vaticinou antecipadamente o surgimento de um ocidente poderosamente influenciado pelo extremismo plutocrático de direita (Elon Musk, Peter Thiel, Alexander Karp, Nick Land e Curtis Yarvin), os quais, aliados a Donald Trump, vem visando unicamente lucros (como preconizado também pela aborrecível Teologia da Prosperidade), monetarismos (um retorno aos “Chicago boys”) e exploração dos mais débeis (já descrito por Marx).
Mas, o próprio Papa deve ter pensado que a religiosidade católica do “Ocidente descristianizado” não estava totalmente perdida. Existem corações cristãos progressistas que batem fervorosamente na América Latina. Neste lugar, historicamente, nasceu uma fecunda reflexão teológica libertadora vivenciada na Teologia da libertação. E as estatísticas dão conta de que, de acordo com o “Proyecto de Opinión Pública de América Latina” (2012), existem ainda países muito católicos. O resultado da pesquisa demonstrou que o Paraguai é o país mais católico da América Latina com 86,2% da sua população professando a religião católica. Não é para menos, os sacerdotes jesuítas ficaram nas reducciones do Paraguai, desde o século XVII e por mais de 150 anos, moldando ad infinitum toda a genealogia cultural e espiritual desse país (que se tornou bilingue pelas mãos dos jesuítas). Em segundo lugar aparece o México, da Nossa Senhora de Guadalupe, protetora das Américas. Em terceiro lugar surge o Equador, de Santa Mariana, padroeira de Quito e protetora dos órfãos e dos doentes. O Brasil aparece no lugar número 11, com uma população católica de 61,8%. Contrariamente, os Estados Unidos estão nos últimos lugares, com apenas 22,9% de católicos em sua população.
O Papa Francisco defendeu, durante todo o seu pontificado, a denominada “opção preferencial pelos pobres”, aquela que vem do Concilio Vaticano II, da década de 60. Uma das formas de lutar contra a pobreza é justamente a participação política. Numa entrevista o Papa disse: “Não nos esqueçamos que entrar na política significa apostar na ‘amizade social’”. Afinal, dizia ele, a política deve ser uma vocação de serviço. Ou seja, Francisco defendia a “amizade social” (conceito análogo ao célebre contrato social). Rousseau (1712-1778) defendia a democracia, no sentido de que todos os seres humanos são iguais e livres. Essa também é a razão pela qual Francisco criticava toda forma de subordinação de uma pessoa a outra (tal como ocorre no caso dos imigrantes e refugidos de crises humanitárias). Rousseau censurava a sociedade burguesa, de hábitos luxuosos e de criação de desejos artificiais. No plano político, sugeria uma sociedade baseada na justiça, na igualdade e na soberania do povo. Por fim, Francisco nunca demonizou a política (como outros Papas), ao contrário, citou o salvadorenho São Óscar Romero como um santo guiado pela Doutrina Social da Igreja e com a mente e o coração depositados em Jesus. O monsenhor Romero ainda inspira os católicos a reencontrarem os motivos pelos quais vale a pena fazer política, mas a partir do Evangelho. A Encíclica Fratelli Tutti (‘todos irmãos’), assinada em 2020, inspirada em São Francisco de Assis (cujo sonho era a de uma sociedade fraterna), representa a essência do pensamento político do Papa Francisco.
No campo do confronto e das discussões políticas Francisco “combateu o bom combate” (expressão extraída das epístolas do apóstolo Paulo que exortava Timóteo a “travar o bom combate com fé e boa consciência”). O Papa criticava o conservadorismo dos católicos norte-americanos, dizendo que substituíram a fé pela ideologia política (ideologia de direita e de extrema direita). Era o reconhecimento de que havia “uma atitude muito forte, organizada e reacionária” na Igreja dos EUA, que chamava de retrógada. Observando hoje a política norte-americana, inclusive fora da igreja, o Papa teve uma clara visão premonitória.
Francisco criticava também a Opus Dei (latim para ‘Obra de Deus’). Criada pelo sacerdote espanhol Josemaria Escrivá, cujo papel na ditadura de Francisco Franco segue controverso, a Opus Dei havia conquistado status único na Igreja Católica durante o papado de João Paulo II. Contudo, a Opus Dei era acusada de fazer jogos secretos de poder nos bastidores. Um decreto assinado pelo Papa Francisco reduziu o poder e a independência dessa organização católica conservadora (Opus Dei). Especificamente sobre a política brasileira, em 2023, demonstrando que conhece muito bem a política do Brasil, o Papa afirmou que o presidente Lula havia sido condenado sem provas e que a ex-presidente Dilma Rousseff tinha “mãos limpas”. Condenou também o denominado “lawfare” – um conceito jurídico que significa o uso do sistema de Justiça de determinado país para perseguição política de adversários. Apoiadores de Jair Bolsonaro (PL) chegaram a expressar abertamente descontentamento com a posição de Francisco. O ex-presidente Bolsonaro foi o único chefe do Executivo brasileiro que não se reuniu com o Papa Francisco.
Mesmo que venha a ser sucedido por um Papa mais conservador não será tarefa fácil esconder ou escamotear o impacto das suas inovações e sua filosofia política. Para Francisco a teologia e a prática pastoral devem se desenvolver de baixo para cima, não impostas de cima para baixo. A sinodalidade (uma forma de democratização interna da igreja) é um exemplo de que o Papa vinha desafiando a estrutura piramidal tradicional. Francisco tentou reaproximar a igreja das pessoas comuns ao mesmo tempo em que procurou tornar os seres humanos mais sensíveis às dores do mundo: desigualdades, fome e exploração económica. Nesse contexto, o próprio Francisco deixou uma frase memorável, quem sabe referindo-se a ele mesmo: “Deus dá as batalhas mais difíceis aos seus melhores soldados”.
Fabio Anibal Goiris autor é professor da UEPG. Graduado em Direito. Mestre em Ciência Política pela UFRGS. Realizou curso de Sociologia Política na Universidade de Londres. É autor do livro: ‘Estado e Política: a histórias de Ponta Grossa – PR’