Sábado, 16 de Novembro de 2024

Coluna Draft: “A Invenção do Humano”, por Edgar Talevi

2021-09-13 às 09:47

“Hamlet observa a Horácio que há mais coisas entre o céu e a Terra do que sonha a nossa vã filosofia”; William Shakespeare, tauro gênio da humanidade, bajouja o eterno, porém efêmero paradoxo da existência por meio de sua douta prospecção do mundo.

Elucubrar o sempiterno é resvalar nas fagulhas da existência humana, em suas verossimilhanças com a arte e a cultura, tais como a acuição da análise de Erich Auerbach, em seu clássico Mimesis, que versa sobre a representação da realidade na literatura ocidental.

O sentimento de pertença que acomete cada indivíduo em seu estamento social é matriz de foro íntimo e, não obstante, coletivo, de saber-se membro de determinada estirpe, sacramentada por afeições naturais comuns.

Tal fato é sentido, notadamente, na vida secular, laica, política, artística, cultural, mas também religiosa da sociedade, perfazendo o conjunto agregado de multifacetadas fenomenologias adjacentes aos tratos sociais em que se envidam esforços conatos, ingênitos de luta e militância por ideais e convicções.

Tome-se por base a laboração das entidades civis do terceiro setor que estabelecem relação de mútua cooperação com o Estado, mediatizando ações de caráter adminículo, achegado e adjutório na promoção de um universo de vida mais humano e bem-intencionado.

Entrementes, a balda do altruísmo não é privilégio ou prerrogativa excelsa ou invulgar de entidades ou organizações corporativas politicamente tituladas. A alma mater de uma comunidade solidária sempre será o amanho irmanado ao pacto pelo bem acurado, na irremissível pugna e testilha pelo bem-estar social.

Perceba-se, nesta perspectiva, que a sociedade civil participa da arregimentação das estruturas constantes do Estado, porém com independência e autogoverno em suas utopias e, por fim, ideações.

Por sua vez, ao Estado cabe o múnus de caucionar as estruturas institucionais democraticamente estabelecidas para que, em prol de alvissareira tenção, designem-se políticas públicas que possam efluir para a arquitetura social mais carente, satisfazendo as necessidades basilares das comunidades carecentes e baldas.

Aqui, no entanto, cabe uma avença: não se pode esgueirar-se do labor político, outorgando-o ao Estado, pois, neste contexto, requerer-se-ia, com azáfama, açodada e imperiosa inópia de que a República se mova tão somente em razão de corporações burocráticas e dependentes da fisiologia pragmática de partidos políticos que, alhures, espreitam nichos eleitorais, flartando com inexorável talhe de pecha eleitoreira.

E, justamente aqui, encontra-se a igreja a quem – como teólogo – me dirijo mesureiramente. Leonardo Boff, em “Igreja: Carisma e Poder”, concebeu as bases da holística visão de mundo em que todo ser humano é igreja, seja esta cristã, espírita, muçulmana ou de matrizes africanas, mas, conforme supracitado autor, todos pertencemos à grandiosidade da libertação, em que os mais pobres, oprimidos, de modo inalienável, estão em nossas mãos, para que façamos o bem, com afabilidade, benquerença, afeição e fraternidade.

Dom Robinson Cavalcanti, em “Cristianismo e Política”, instaurou o sentido de pertencimento das comunidades eclesiásticas ao mundo em que vivemos. O bispo anglicano cita, em sua obra, frase egrégia e conspícua do teólogo alemão Bonhoeffer: “O homem é convocado para sofrer a paixão de Deus no mundo sem Deus”.

Destarte, Kaelstadt e Thomas Munzer, teólogos diletos de origem reformada, germinaram sementes de entendimento da ética do estabelecimento de uma nova ordem de justiça social no mundo, baseada no amor ao próximo.

Cabe, portanto, à igreja, o favorecimento da obra social, mediatizada pelas escrituras sagradas, em que se vê seu próprio Mestre, engenhoso em amor, Jesus Cristo, vindicando novo mandamento: “Ame o seu próximo como a si mesmo” – Mt 22:39 (ARA).

Amar o próximo, no contexto teológico, nada mais é que devotar trabalho, agir com argúcia em favor dos “desmerecidos”, dos módicos, conhecendo a exiguidade do tempo para os que sentem fome. Não se pode viver as boas novas do Evangelho narradas nas escrituras em detrimento da ação social. Ou se vive o amor por ação, ou se perde a existência por inação. Uma e outra não convivem, mas se repelem.

André Biéler, teólogo calvinista, assim se refere às palavras do reformador: “Ora, se nesse tempo acontecia que Deus reprimia as fraudes que se cometiam nos pesos e nas medidas, que se dirá hoje?”

Calvino, para Biéler, incentiva à militância em favor dos desfavorecidos, dos oprimidos e calcados, não deixando dúvidas a serem dirimidas quanto ao papel imprescindível da igreja na relação com a pobreza, injustiças e intempéries por que passam os mais vulneráveis.

Harold Bloom criou o epíteto em Shakespeare como o inventor do humano, em: “Shakespeare: a invenção do humano”. Mas, fica a pergunta desinquieta: Temos experimentado a invenção do humano ou tal façanha é sina literária?

Em uma sociedade líquida, de valores móveis e efêmeros, segundo pensa o sociólogo Zygmunt Bauman, haveria espaço para a excentricidade do humano em favor do humano, ou estaríamos alienadamente absortos em jactar-nos de nós mesmos?

Fiquemos com a frase do filósofo e teólogo Ariovaldo Ramos: “A grande maioria do sofrimento humano seria resolvido pela própria sociedade se nós nos amássemos

Coluna Draft

por Edgar Talevi

Edgar Talevi de Oliveira é licenciado em Letras pela UEPG. Pós-graduado em Linguística, Neuropedagogia e Educação Especial. Bacharel e Mestre em Teologia. Atualmente Professor do Quadro Próprio do Magistério da Rede Pública do Paraná, na disciplina de Língua Portuguesa. Começou carreira como docente em Produção de texto e Gramática, em 2005, em diversos cursos pré-vestibulares da região, bem como possui experiência em docência no Ensino Superior em instituições privadas de Ensino de Ponta Grossa. É revisor de textos e autor do livro “Domine a Língua – o novo acordo ortográfico de um jeito simples”, em parceria com o professor Pablo Alex Laroca Gomes. Também autor do livro "Sintaxe à Vontade: crônicas sobre a Língua Portuguesa". Membro da Academia Ponta-grossense de Letras e Artes. Ao longo de sua carreira no magistério, coordenou inúmeros projetos pedagógicos, tais como Júri Simulado, Semana Literária dentre outros. Como articulista, teve seus textos publicados em jornais impressos e eletrônicos, sempre com posicionamentos relevantes e de caráter democrático, prezando pela ética, pluralidade de ideias e valores republicanos.