Miraculosamente incólume – tal como diria Mário Quintana, em seu Baú de Espantos – a plateia, atônita, aguardava o final do longo introito do mestre de cerimônias do evento. Havia três meses a preparação da festa de lançamento da nova peça literária do atual Presidente da Academia de Letras do Município. Os leitores, ávidos e ansiosos, mal podiam se concentrar nos penduricalhos linguísticos de que lançava mão o político da cidade que criava uma barreira cultural entre o verdadeiro artista e seu público.
Antenor, homem alto, sério, barba muito bem cuidada, aparada semanalmente ao melhor estilo moderno, sem, no entanto, parecer anacrônica à sua idade, contada acima dos 40 anos, tendo passado seus dois últimos à frente do município, mas, justiça seja feita, tendo cumprido seu mister sem maiores objeções, a não ser pela vaidade de querer pertencer mais à arte que o nobre convidado principal.
– Senhores e Senhoras munícipes! Tenho a imensa satisfação de, como gestor da cidade, apresentar, sem mais delongas – essa frase passou despercebida – nosso artista maior, célebre nas entrelinhas de suas obras, bem como monumental criador de personagens sempre lúcidas e esplêndidas! Recebamos, com muita honra e calor humano, Gianluca Del Piero.
Os aplausos foram espontâneos e unânimes. Nada a se invejar os movimentos culturais importados ou aculturados. Embora descendente de italianos, o poeta, romancista, cronista, haicaísta e tantos outros gêneros a que lhe forem atribuídos, possuía raízes firmadas no solo daquela terra. Havia sentimento de pertença.
Pela influência de Dante Alighieri, sempre houve um pouco da Terra Nostra no cenário de suas praias, matas, fazendo lembrar, de igual modo, em uma licença poética e literária, o grande José de Alencar, quando este descrevia com perfeição a paisagem que, de tão proeminente, tornava-se personagem no enredo.
Tomou, finalmente, a palavra, o celebrado autor e Presidente da Academia de Letras do município. Era hora de se conhecer o lançamento tão esperado daquela noite.
– Muito obrigado, por tão sinceras e colendas palavras, Senhor Antenor. Estamos grato! Estamos feliz! Estamos representado nesta que é a noite mais importante de minha vida!
Permita-me, o prezado leitor, a interrupção abrupta do narrador-colunista para que analisemos as linhas do parágrafo que antecede esta fala, em que houve um “deslize” sintático de concordância por parte do eminente romancista. SERÁ?
Senão, vejamos:
Ao se dirigir diretamente à plateia, após elegantes elogios recebidos do cerimonialista – político do evento -, nosso autor parece derrapar na sintaxe ao transgredir as normas de concordância, a saber, nos sintagmas: – “Estamos grato! Estamos feliz! Estamos representado”. No entanto, averiguemos atentamente se o lúcido poeta, de fato, corrompeu a norma culta de sua segunda Pátria, a Língua Portuguesa.
Quando assumiu a tribuna e fez uso da palavra, o prestigiado autor, de forma a usar de modéstia, expressou-se na primeira pessoa do plural, tal como se vê no vocábulo “Estamos”. Neste sentido, a forma escolhida pelo orador é corroborada pela regra de concordância de modéstia, em que se evita a primeira pessoa do singular para que não se comprometa o intuito de o interlocutor agir com humildade.
Mas, isso encontra guarida na norma culta?
A resposta é um sonoro SIM!
Procuremos amparo em “A Nova Gramática do Português Contemporâneo”, de Celso Cunha e Lindley Cintra, em sua terceira edição, de 2001, na página 284:
Nas palavras dos supracitados gramáticos: “Advirta-se que, quando o sujeito nós é um PLURAL DE MODÉSTIA, o predicativo ou particípio, que com ele deve concordar, costuma ficar no singular, como se o sujeito fosse efetivamente eu”
Ex. Ficamos perplexo com o que ele disse.
Sendo assim, problema resolvido! É absolutamente correto o uso do singular para o adjetivo predicativo em casos em que o interlocutor invoca a modéstia através da primeira pessoa do plural.
Isso posto, a pergunta que se levanta é: Face ao desconhecimento da maioria presente em uma plateia a respeito da regra, seria proveitoso fazer uso desta?
Bem, prezado leitor. Em minha opinião, como linguista, diria que NÃO! Afinal, a fala sempre precederá a norma, portanto o que vale é passar a imagem do correto, mesmo que isso interfira nos padrões obsoletos das tantas normas gramaticais.
A isso se dê o nome de hipercorreção, cujo maior significado foi trabalhado por Freud. Errar para parecer Correto é normal em situações como essas, em que se privilegia o conhecimento do senso comum em detrimento das burocráticas e inusuais normas gramaticais.
Ademais, fiquemos com as palavras do poeta Oswald de Andrade:
Pronominais
Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro.