As Quatro linhas da Constituição
“Sabe-se, hoje, muito bem, que não se devem julgar os costumes antigos pelos modernos”. François-Marie Arouet, mais conhecido pelo pseudônimo Voltaire, definiu a historicidade das civilizações por meio de uma proposição vanguardista da condição político-social de uma sociedade. Sob esse prisma, o presente repete o passado quando se obstina à intrujice obsoleta dos desvarios ardis que assolam as minorias socialmente vulneráveis.
É fato que o mundo hodierno imerge nas mazelas do obscurantismo funesto, erigido pelo Brexit, Donald Trump e radicalismos vivenciados nos extremos políticos, desde que os lados foram estabelecidos na Revolução Francesa de 1789.
O episódio da abolição da escravatura, alteada em 1888, deu início a um processo de repensar a sociedade mediante uma dialética mais humana, ao menos em tese, pelo mérito de sua premissa, mas jamais consolidou a inclusão dos grupos desolados e adstritos, que foram lançados à própria sorte.
A Proclamação da República, em 1889, precedida pelo manifesto republicano, de 1870, levou a incipiente nação a uma pseudo percepção de fortalecimento do poder executivo. Mas o legado da nova república foi a sub-representação da sociedade no sistema político, reservando a poucos a participação das decisões nacionais, bem como ampliando a exclusão de diversos estamentos sociais.
Apressuremos o tempo para 1933, na ditosa Era Vargas, em que a convocação de uma Assembleia Constituinte outorgou ao povo brasileiro o voto secreto, o voto feminino, além do ensino primário obrigatório e das leis trabalhistas. Alvíssaras formaram o espectro político nacional, mesmo às expensas de um populismo exacerbado, mas que obsequiou a classe trabalhadora com benesses precípuas.
Destarte, se me permite o leitor, contemplemos décadas à frente. Após arroubos neoliberais dos anos 90, em Fernando Affonso Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso, a era subsequente eclodiu uma crescente classe média que, pela primeira vez na história, foi capaz de adjudicar de seus direitos basilares, expugnando seu sentimento de pertença e inclusão à sociedade.
Apesar disso, intempéries abjetas circundaram as oligarquias que adjetivam a democracia como o direito de prerrogar sobre as minorias desfavorecidas, subjugadas e, historicamente, preteridas. Chegamos à época do obscurantismo, do despótico e do fisiologismo político-partidário que, pragmático, manifesta impulso pela manutenção do status quo oriundo dos privilégios das maiorias apaniguadas pelas benemerências que acentuam preconceitos e marginalizam o diferente, o divergente e o excluído, ao bel-prazer do conservadorismo doidivano.
Todo radicalismo casmurro externado por proferições de cunho golpista e que atentam contra as instituições democráticas constituídas por longo processo social de debate e construção, promulgadas pela Constituição Cidadã de 1988, evidencia o caráter indecoroso e ignóbil de uma esfera de poder que pleiteia a autocracia e pedincha a monocracia, ablegando direitos fundamentais dos indivíduos, condenando-os à marginalização da sociedade.
Não obstante, táticas diversionistas de discursos de intervenção, quais sejam, ao Estado Democrático de Direito, devem ser repelidas exemplarmente à linde da lei. Não se pode aceder a chicanas e ataques cesaristas comezinhos sem que haja indignação e fereza veementes na pugna social, econômica, étnica, religiosa, de orientação sexual e política.
Salvaguardar as instituições democraticamente implementadas é lançar mão de seus mais elementares direitos. Não se pode inebriar com o jugo desigual, tampouco arrefecer a antojo por uma sociedade solidária, que lute contra o preconceito, o racismo e forças antagônicas à democracia. Cortella, em sua obra “Por que fazemos o que fazemos?”, diz: “Somos acometidos pela sensação de valorizarmos sempre o que não estamos fazendo”. Essa noção de torpor não nos pode impedir de bramir contra a injustiça social e a infâmia da exoneração de prerrogativas.
Permita-me, o prezado leitor, que este colunista enseje sonhar com o inaudito Estado social e político, em que as minorias sejam alcançadas por suas próprias vozes, construindo o espaço de suas forças e conquistas, produzindo o legado de uma civilização perpetuada pela pluralidade de ideias.
Ademais, vocifero as diletas palavras de Gramsci: “Os defensores não são desmoralizados, nem abandonam suas posições, mesmo entre as ruínas, nem perdem a fé em sua própria força ou em seu próprio futuro”
As quatro linhas da Constituição sempre serão o campo das inegociáveis conquistas individuais e coletivas, portanto mister de toda uma sociedade que estima sua liberdade e democracia.