“deus” está morto!
“O ser é e o não-ser não é; este é o caminho da convicção, pois conduz à verdade (…)”. O trecho extraído do poema de Parmênides, filósofo pré-socrático, de grande poder intelectual, deslocou o pensamento filosófico da cosmologia para a ontologia – gama da metafísica que trata da natureza, realidade e existência dos entes.
Alhures do universo religioso – como arcabouço dogmático e simbólico de fé -, a convicção de que trata a ontologia, no respeitante à infinitude do ser, provoca o pensamento abstraído da não-contradição da asserção dos axiomas que regem a literalidade do não-ser frente à existência do ser.
É nesta perspectiva que afianço que “deus” está morto! Salvaguardemos a assertiva proposta pela historiografia humana, em suas peripécias e intempéries mais abjetas. Percebamos, para tanto, que, notadamente, a cada evolução de paradigma social de elevação de personalidades, retrai-se o conceito elementar do humano, em seu espectro lato, de modo a causar torpor nas sociedades de épocas diferentes, sem que, para isso, haja anacronismo no raciocínio semântico da hipótese em formulação.
Na Grécia Clássica, também chamada helênica, a percepção da divindade sofreu achaques do platonismo, pelo qual a metafísica se resumia, pragmaticamente, na divergência mente-corpo/subjetivo-objetivo, maculando o espírito do transcendente pela abstração do humano, qual seja, privilegiando a atividade do homem sobre as virtudes da alma. Embora pareça contraditório, a proposição de que o mundo subjetivo se eleva qualitativamente ao mundo físico evoca o indivíduo a se tornar seu próprio deus.
Isso se alastrou pela cultura do culto à personalidade de tiranos, tais como Hípias, em Atenas, chegando a influenciar a cultura romana, vista na figura dos imperadores da época de Cristo, com especial notoriedade percebida em Nero – pós-Cristo – período apostólico. Toda arte, ciência literatura, filosofia e teologia – esta incipiente à época – lançara mão da cognição greco-helenística para engendrar suas vicissitudes na aristocracia monárquica dos regimes que sucederam o período.
O culto aos imperadores foi uma forma de o homem tomar para si o poder do divino para prestar louvor aos seus próprios feitos, aspirando à perpetuação e hegemonização do/no poder.
A perseguição aos cristãos primitivos e o incêndio à cidade de Roma foram depósitos das amofinações de um imperador na pretensão de impor a cultura do poder pelo ego humano.
Não obstante, a estatura da vaidade humana permaneceu inamovível em toda história das organizações político-sociais. Corramos o tempo ao momento em que o regime nacionalista, extremista, xenofóbico, racista e antissemita do Nazismo superou a República de Weimar, em 1933, e deu início à Segunda Grande Guerra, em 1939, na busca pela imposição do poder e do vilipêndio dos valores da pessoa humana. Hitler prefigurou o Anticristo (deus avesso ao Deus-Cristo) na práxis de uma conjuntura política de segregação racial e deflagração de terror e medo. Entrementes, fez discípulo na Itália, com o fascismo, de Benito Mussolini. Mais uma vez, percebe-se o homem no andar de cima, deus de sua espécie.
A viagem continua na era pós-moderna. Os arroubos de retórica, engenhosamente arquitetados por líderes políticos e pseudo-religiosos apensam aos seus movimentos adeptos que perenizam o totalitarismo, seja por meio da estatização, tal como se viu no Stalinismo, ou por meio de morbígenos templos em adoração ao humano e sagrada pecúnia, como se constata no “evangelho das fake news”, dos despóticos mentores, e da fé na fé, na moderna venda de indulgência. A isso tudo se deve a crítica de Friedrich Nietzsche, em seu “O Anticristo“, em que o exímio filósofo afirma: “A nossa época tem orgulho no seu senso histórico”. Qual seja a intenção do autor, transparece a insígnia do humano como detentor do poder divino.
Ainda em “O Anticristo”, Nietzsche corrobora com a ideia fundamentada na centralidade humana no segmento: “Se compreendo alguma coisa a respeito desse grande simbolista é o fato de só considerar como realidades, como “verdades” realidades interiores”. Vê-se que, para o eminente pensador, a humanidade não causou novo ânimo ao tomar para si, intracorporis, o que lhe não fora ofertado, se não pelo intuito de idolatrar a si mesmo.
Neste momento, pensaria o prezado leitor: – Enfim, qual o deus do humano? – Há um Deus para além do homem? A resposta é: “O ser é e o não-ser não é”!
O Ser, infinito e essência em si mesmo, imorredouro e inamovível, intransponível em sua asseidade, simplesmente “É” e se basta a si mesmo, conforme asseguram Martinho Lutero, João Calvino, Louis Berkhof, Paul Tillich, Karl Barth dentre outros fecundos teólogos. Heidegger, a esse respeito, assegura que o SER é autônomo, independente e indefinível.
Usemos, no mesmo contexto, o termo “É”, do verbo ser, pois o Deus denominado Ser Único, pessoal, íntimo, imanente e transcendente ao mesmo tempo assim se revelou nas páginas das Escrituras Sagradas: “Eu Sou o Que Sou” (Êxodo 3:14 – ARA), em revelação de Si mesmo a Moisés, líder hebreu.
O Ser “É”, na figura do amor altruísta, esvaziado de si mesmo, conforme se viu em Cristo, abdicado do “Trono” para viver o humano, mas dando a Glória Áquele que O enviou, segundo relata o apóstolo Paulo: “A Si mesmo Se humilhou” (Filipenses 2:10 – ARA). O Ser “É” na forma do todo inteiro, na predileção pelo amor ao próximo, como mandamento e estilo de vida: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mateus 22:39 – ARA).
Abraham Kuyper, em seu elegante “Calvinismo”, propõe: “Desta única fonte, em Deus, a soberania nas esferas individuais”. Para o autor, o humano não coopera com Deus em favor de si próprio, mas é estabelecido segundo a providência do SER. C. S. Lewis, em “A abolição do homem”, cauciona: “Toda conquista sobre a natureza faz com que ela expanda seu domínio”. Dominar, ao homem, portanto, equivale a perder o domínio, posto que enseja o não-ser.
Ora, o homem não condensa em si os atributos da divindade, porque divisível, perecível, infinitamente mutável e efêmero, mortal, personificando o não-ser. Deste modo, enquanto esgueirar-se do entendimento de que o culto a si próprio é prova incontestável de sua ínfima presença no mundo, o deus-homem/dos-homens estará morto. Mas, ressalve-se, o deus dos homens jamais será o SER, único Deus, alheio aos sistemas, não pertencente a qualquer “combo” ou agregação.
Deus, não confundido com o homem e seus sistemas, com a personalidade humana em sublimação de seu antropocentrismo, sempre estará Vivo, pois é o único verdadeiro “SER”. O homem, deus de si mesmo, já está superado pela limitação do não-ser, infimamente superficial no universo intransponível da existência.
E, se Deus “É”, apenas recomecemos nossa caminhada hoje, em confiança plena de que não somos nós, mas Ele mesmo que chegou à existência para que nos tornássemos seguros na insegura jornada da vida.
É de C. S. Lewis a frase que incandesce nosso espírito ao único SER, indissolúvel e indesatável: “Acreditamos que o Sol esteja no céu ao meio-dia de verão não porque podemos vê-lo claramente, mas porque conseguimos ver todas as outras coisas”