Terça-feira, 24 de Dezembro de 2024

Coluna Draft: ‘Homeschooling: a derrocada da carreira docente!’, por Edgar Talevi

2024-11-20 às 16:04
Imagem: Freepik

“A Educação é a arma mais poderosa que você pode usar para mudar o mundo!” Assim, Nelson Mandela, Prêmio Nobel da Paz, definiu a importância da presença do maior legado que o ser humano pode deixar à sua posteridade: a Educação.

Não obstante, por razões puramente ideológicas, partidárias, eleitoreiras, despóticas, inexoravelmente ilusórias, a Câmara dos Deputados aprovou, na quarta-feira (18), o projeto que regulamenta a prática da educação básica domiciliar, conhecida como homeschooling, que esfacela a carreira docente no país e desmantela todo o constructo que estrutura o sistema educacional arregimentado a duras penas pela Lei 9.394/1996.

Com (pre)textos de democratizar o ensino e favorecer as virtudes das relações familiares, bem como permitir ensinamentos que se assemelhem à natureza do desenvolvimento de valores de cada núcleo familiar, o projeto desvirtua o entendimento de que o processo de escolarização só ocorre por meio de instrução técnica e operacional dentro de gestões pedagogicamente capacitadas para tanto.

Assegurar o ensinamento familiar com base na ocultação de outras ideias, ideologias, indumentárias ontológicas e pedagógicas é prática de autoritarismo, acefalia, autofagia e demagogia para um público crescentemente fértil de convencimento por meio de Fake News.

Usar o contexto do anti-petismo ou da contrariedade às ideias da esquerda ou do progressismo é, no mínimo, salvaguardar a nulidade do processo do direito à instrução e ao conhecimento, pelo qual cada indivíduo, capacitado pelo aprofundamento do estudo da pluralidade de opiniões, saberes e manifestações culturais, construirá, a seu critério, os ideais que comporão a identidade a que cada um recorrerá em conformidade com sua liberdade de decisão.

Obstruir o acesso à instrução nas instituições de ensino regulares é insígnia de sectarismo, que não mais pode ser compactuado por uma sociedade livre, multifacetada e vivendo em um regime de Estado Democrático de Direito. Abandonar a égide da Educação em nome de determinados grupos ideológicos é impedir que crianças e adolescentes desenvolvam suas capacidades com tecnicidade e habilidades cientificamente paramentadas e permeadas por conhecimentos acadêmicos que somente o sistema educacional pode oferecer.

Para que entendamos os danos irreparáveis à formação dos educandos por meio do lamentável projeto do homeschooling, averiguemos alguns de seus efeitos mais nocivos.

Contrariando a LDB, o PL 3.179 altera a norma de abertura do sistema educacional brasileiro, inscrito no artigo 1º da LDB (Lei 9.394/1996). A LDB passaria a permitir duas entradas ao ensino regular. Simbolicamente e juridicamente o achaque à instrução dos educandos é abjeta e absurda, haja vista a desconstrução da instituição escolar e do próprio mister dos profissionais da educação.

Outro ataque feroz e ácido contra a Educação instituída pelos profissionais da Educação e instituições sólidas de instrucionalização é o que versa sobre o direito de crianças e adolescentes à escolarização. O direito à instrução é universal e constantemente buscado por Estados e Municípios.

A Constituição de 1998 e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) formalizaram a universalização do ensino escolar aos educandos, bem como salvaguardaram a construção de planos de adequação e planejamento para o alcance das metas estabelecidas nos documentos oficiais da União.

Com o homeschooling, o Direito fundamental de crianças e adolescentes à escolarização é abolido na prática, pois a educação seria tão somente uma escolha ou decisão domiciliar, em nada compartilhada com os deveres jurídicos estabelecidos pelos textos dos Estatutos que regem a Educação brasileira.

Com o homeschooling, o bolsonarismo impõe sua pauta mais agressiva contra os profissionais da Educação e, entrementes, contra crianças e adolescentes, sem que muitos percebam, quais sejam: depreciação de escolas em nome de uma ideologia eleitoreira de extrema direita; a desvalorização da carreira dos profissionais da Educação e a desconstrução do direito fundamental à instrução nas instituições escolares regulares.

Uma das “desrazões” que mais causam estranheza nos discursos nada dialéticos dos que defendem o PL do homeschooling é o acolhimento de crianças e adolescentes em seus núcleos familiares, evitando, a seu modo, a ideologização de esquerda pelo qual, segundo os párias que defendem o PL, é seguida e disseminada pelos profissionais da Educação.

Uma pergunta é necessária neste momento: cada cidadão adulto que, neste momento, com carreira política ou não, defende o homeschooling pelo fato de que se “escape” da doutrinação de esquerda das escolas (fato que não existe), não passaram pela escola regular? Não tiveram estes o ensino nas instituições regulares de ensino contra as quais se voltam agora? E, caso a resposta seja positiva, de que modo explicam o fato de que não são de esquerda? Isso prova que a escola ensina, não doutrina, pois, os que pela escola foram instruídos, agora se voltam contra ela sem nenhum argumento solidamente construído. Isso demonstra que o homeschooling serve a nichos eleitorais e à pretensão da manutenção de status quo de governos despóticos.

Outra instituição que critica asperamente o ensino domiciliar em substituição à escola regular é, nada menos, que a UNICEF. A entidade manifestou preocupação com a fiscalização do modelo, do impacto à saúde psicológica e segurança física de crianças e adolescentes.

Segundo nota da UNICEF, divulgada na sexta-feira (20): “Autorizar a educação domiciliar significa privar crianças e adolescentes do seu pleno direito de aprender (…)”. A nota segue em contrariedade ao PL que desmonta o ensino no país.

Observemos outros dados importantes pós-pandemia. A evasão escolar bateu recorde durante a Pandemia. Milhares de estudantes estiveram à margem do ensino em razão da falta da frequência escolar. Mais alarmante ainda são os dados obtidos por levantamentos de Secretarias de Estado de Educação, por meio de Provas específicas de conhecimento aplicadas aos alunos. Mostra-se, de modo lamentável, uma incidência Dantesca de falta de conhecimento básico em Matemática e Português, componentes curriculares elementares à instrução de crianças e adolescentes. Isso nos leva a mais perguntas: Onde estavam pais que defendem o homeschooling durante a Pandemia? Como puderam não ensinar devidamente seus filhos, sem que houvesse a presença destes nas escolas?

Não cessam as dúvidas a serem dirimidas. De que forma um pai ou mãe, mesmo com instrução superior, conforme reza o PL do homeschooling, poderá dominar saberes específicos de todas as disciplinas? Ensinar Ciências, História (com isenção), Geografia, Matemática, Português (orações subordinadas adverbiais concessivas, por exemplo), Arte etc. seria possível? De que modo o entendimento de saberes da Psicologia da Educação, de técnicas de ensino, metodologias de elaboração de avaliações adaptadas aos alunos especiais, conhecimentos oriundos da área da Sociologia da Educação e demais estratificações técnicas poderiam ser dominadas pelos entes familiares que, mesmo com formação superior, não dominam tais saberes?

Constatadamente, não teriam tempo para elaborar provas, trabalhos diferenciados, ensinar todas as disciplinas nem teriam conhecimento para tal. Isso é ofício de profissionais devidamente habilitados, como os professores, que passam anos na faculdade, com conhecimentos teóricos e práticos sobre sua cátedra, bem como estágios devidamente certificados e controlados para que, após formados, possam promover o melhor para a instrução de cada educando.

Somente um profissional de Português poderia aperfeiçoar métodos e técnicas de ensino de orações reduzidas de particípio ou gerúndio, por exemplo. Ou o conhecimento sobre regência, concordância, acentuação gráfica, períodos compostos por coordenação seriam dominados por adeptos do homeschooling?

Ademais, é no processo da socialização que crianças e adolescentes se preparam para o mundo, para as provas que a vida exige e, desta forma, amadurecem. O processo civilizatório ocorre mediante contato com outras pessoas, em um constante respeito à diversidade e a fenomenologias culturais diferenciadas.

Não obstante, casos de crianças que sofrem de abusos sexuais, psicológicos e afins não seriam identificados à medida que se privasse a presença dessas nas escolas. Sendo assim, muitas crianças seriam reféns de famílias com problemas estruturais severos e, neste caso, indetectáveis ao poder público.

Destarte, ainda afirmo: nenhum profissional da Educação tem conhecimento técnico ou Direito a prescrever uma medicação, por exemplo. Isso é ofício de profissionais treinados e habilitados em Medicina. Neste ínterim, seríamos todos habilitados a prescrevermos métodos e técnicas de aprendizagem formal, científica aos educandos? Anos de faculdade por que passam os professores não fomentam perspectivas de conhecimento técnico que os habilita acima de todos os demais profissionais a ministrarem o ensino de seus componentes curriculares em sala de aula?

Seriamente comprometidos com a educação formal dos educados, os profissionais da Educação, devidamente habilitados, treinados e preparados para a sala de aula são o melhor caminho para uma instrucionalização séria, eficiente e acadêmica.

Nada substitui o professor! Nada substitui a Escola. Nada poderá impedir os educandos a terem seu contato com um mundo de escolhas, de diversidade, de diferentes culturas e manifestações humanas.

Educação exige contato humano. A família é fundamental no processo de fomento aos valores e personalidade de crianças e adolescentes. Nada obsta a isso. Mas pensar que a escola não é o caminho para a construção de conhecimentos e novos valores serve apenas a interesses escusos que têm o poder de impetrar uma agenda perversa de desmonte da carreira docente e das instituições escolares.

Sirva-nos de alerta a famosa frase do Educador, Patrono da Educação Brasileira, Paulo Freire: “Ninguém educa ninguém; ninguém educa a si mesmo. Os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo!”

Coluna Draft

por Edgar Talevi

Edgar Talevi de Oliveira é licenciado em Letras pela UEPG. Pós-graduado em Linguística, Neuropedagogia e Educação Especial. Bacharel e Mestre em Teologia. Atualmente Professor do Quadro Próprio do Magistério da Rede Pública do Paraná, na disciplina de Língua Portuguesa. Começou carreira como docente em Produção de texto e Gramática, em 2005, em diversos cursos pré-vestibulares da região, bem como possui experiência em docência no Ensino Superior em instituições privadas de Ensino de Ponta Grossa. É revisor de textos e autor do livro “Domine a Língua – o novo acordo ortográfico de um jeito simples”, em parceria com o professor Pablo Alex Laroca Gomes. Também autor do livro "Sintaxe à Vontade: crônicas sobre a Língua Portuguesa". Membro da Academia Ponta-grossense de Letras e Artes. Ao longo de sua carreira no magistério, coordenou inúmeros projetos pedagógicos, tais como Júri Simulado, Semana Literária dentre outros. Como articulista, teve seus textos publicados em jornais impressos e eletrônicos, sempre com posicionamentos relevantes e de caráter democrático, prezando pela ética, pluralidade de ideias e valores republicanos.