Sexta-feira, 26 de Abril de 2024

Coluna Draft: ‘O Evangelho e as Fake News’, por Edgar Talevi

2021-10-04 às 09:52

O Evangelho e as Fake News

Respondeu-lhes Jesus: Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida; ninguém vem ao Pai senão por mim”. (João 14:6 – ARA).

A religião nasceu do coração humano como tentativa de absorver o divino pela orquestração de insígnias litúrgicas e ritualísticas que elevam, sublimam a alma ao transcendente.

Isso é comprovado pela existência da multiplicidade de confissões dentro de um mesmo segmento religioso, seja monoteísta ou politeísta. Ao retomarmos a história da igreja cristã – para que nos valhamos de exemplo específico -, o termo religio era comum aos romanos, no incipiente cristianismo. Nessa atmosfera, os romanos seriam tão orgulhosos de sua religio, que se auto-proclamavam o povo mais religioso entre todos os povos.

Séculos depois, o termo ganhou novos significados e adereços identitários, tais como em Cícero, que adotou o termo relegere e, em Tertuliano, por meio do vocábulo religare. Segundo o teórico Benveniste, relegere diz respeito a recolher-se, a fazer uma nova escolha, a retornar a uma síntese anterior para recompô-la. Para  Agostinho, erudito teólogo do séc. IV, o termo relegere foi superado pelo uso de uma nova concepção, por meio do religere – reeleger – retorno a Deus.

Salvas tamanhas idiossincrasias, disputas vocabulares e de correlações paradigmáticas de sentido e pertenças dogmáticas, o argumento de que lanço mão, neste breve artigo, é o da verdadeira religião, seja qual for o termo a ela conferido. Nesta perspectiva, é notória a divisão entre matrizes religiosas, sejam estas cristãs, muçulmanas, africanas, judaicas, Kardecistas dentre outras. O que, na verdade, divide os indivíduos, nada tem a ver com a fé, pois esta se manifesta de forma plural, independente do arcabouço doutrinário a ela adereçado, mas tem íntima relação com o status quo de seus espectros cúlticos, culturais, fenomenologia pragmática e endereçamento divino.

Em época em que existe iminente tensão política no Brasil, dada a relevância das eleições majoritárias de 2022, “religiosos” roubam a cena midiática em suas celebrações eclesiais para angariarem adesão de nichos eleitorais que são cativos à audiência da realização de cultos, reuniões e afins, na expectativa de unir forças ao poder estatal.

A preocupante união igreja-estado teve sua ascensão a partir do ano de 380, em que Teodósio definiu a religião cristã como oficial do Estado, sendo que, a partir deste decreto, os costumes cristãos se impuseram rapidamente na vida social e política da época. Mas, ao relermos a história, não houve significativas transformações de mundo, tampouco de valores, por meio de lei. O que se percebeu foi apenas um engajamento da religião ao Estado, sendo a recíproca verdadeira, em latência de inviabilização de se apregoar a libertação dos povos, dos marginalizados, dos mais vulneráveis, dos incautos e dos dependentes do poder público.

Entrementes, desde o período de Teodósio, a religião não emancipou uma sociedade cativa pela violência contra os mais pobres, contra o regime escravocrata, nem trabalhou em favor dos direitos civis das mulheres, tampouco contemplou a diversidade étnica e cultural presente nas sociedades. Isso nos leva a refletir sobre o protagonismo exacerbado de determinados líderes religiosos em detrimento do próprio sentimento religioso nas esferas sociais.

O que nós vemos hoje, salvaguardadas as devidas exclusões e proporções, é o despotismo vizinhando a eclesiologia de fundamentalistas, propagadores de fake news a respeito da crença em Cristo e do próprio Cristo, qual seja, a venda da fé por meios materiais, teologia alheia ao bom senso e ao pensamento cristológico constante do Novo Testamento.

Ademais, a propagação do desrespeito para com as religiões de matrizes africanas, bem como a falta de orientação para a diversidade cultural, de gênero e social fazem com que percamos a mensagem mais substancial do que Cristo pregou, a saber, o atendimento às viúvas, aos menos favorecidos, aos presos em regras e liturgias impossíveis de serem cumpridas, aos enfermos físicos e doentes, da sociedade.

Lembremos de que o Messias bradou veementemente contra Saduceus, detentores de poder no Sinédrio, com influência política à época, e contra os Fariseus, que carregavam a pecha de serem absolutamente santos, cumpridores de seus deveres, mas, em si mesmos, pervertidos pela falta de amor ao próximo.

Quando ouvimos um discurso de um ator político que prega a elevação ao cargo de Ministro do STF um indivíduo “terrivelmente evangélico”, não deixamos de lembrar as táticas diversionistas dos religiosos excludentes da igreja primitiva, que queriam o poder para manutenção de sua influência, mesmo à custa de favorecimento de uma elite econômica e social, sem perceber os arroubos que derivam da personalização e exclusão em favor de um proselitismo religioso institucionalizado.

Santo Agostinho, em Suas Confissões, no livro décimo, diz a respeito de Seu Criador: “Porque não mudas nem de forma nem de movimento, e tua vontade não varia de acordo com os movimentos, porque a vontade que muda não é imortal”. Sobre esse pensamento agostiniano, podemos conceber a ideia de que Deus não muda conforme movimentos religiosos, ou seja, Sua vontade é imortal, e ela não depende das circunstâncias volitivas humanas.

Pode e deve o homem criar suas formas elaboradas de veneração, mas jamais prescindir do respeito às diversidades, de seu mister de inclusão dos mais pobres, do direito das minorias, da luta contra o absolutismo intelectual e ideológico, dos aturdidos atos de violência percebidos diariamente no país.

Elevar a alma ao sagrado e ao transcendente é, acima de tudo, desarraigar de si próprio em favor do outro, em atitude de entrega. Contemplar o divino é, antes de um cumprimento de regras e liturgia cúltica, o diálogo inter-religioso perene, aberto às diferenças, ensejando a abertura à pluralidade de ideias e receptividade de novos pensamentos que possibilitem a união de forças no enfrentamento aos problemas que o processo civilizatório traz consigo.

Fiquemos com as palavras de Cristo, no evangelho, segundo escreveu Mateus, 22:39: “(…) Amarás o teu próximo como a ti mesmo”.

A verdadeira religião, sem as fake news propagadas por falsos mestres, é cuidar um do outro, não importando, para isso, o credo, a etnia, o gênero, mas com o olhar voltado à presença de Deus em todas as relações humanas. Desta forma, o processo de inclusão ao transcendente será possível, e viremos a nos tornar mais humanos, tal como registrado nas palavras do filósofo Jean-Paul Sartre.

Coluna Draft

por Edgar Talevi

Edgar Talevi de Oliveira é licenciado em Letras pela UEPG. Pós-graduado em Linguística, Neuropedagogia e Educação Especial. Bacharel e Mestre em Teologia. Atualmente Professor do Quadro Próprio do Magistério da Rede Pública do Paraná, na disciplina de Língua Portuguesa. Começou carreira como docente em Produção de texto e Gramática, em 2005, em diversos cursos pré-vestibulares da região, bem como possui experiência em docência no Ensino Superior em instituições privadas de Ensino de Ponta Grossa. É revisor de textos e autor do livro “Domine a Língua – o novo acordo ortográfico de um jeito simples”, em parceria com o professor Pablo Alex Laroca Gomes. Também autor do livro "Sintaxe à Vontade: crônicas sobre a Língua Portuguesa". Membro da Academia Ponta-grossense de Letras e Artes. Ao longo de sua carreira no magistério, coordenou inúmeros projetos pedagógicos, tais como Júri Simulado, Semana Literária dentre outros. Como articulista, teve seus textos publicados em jornais impressos e eletrônicos, sempre com posicionamentos relevantes e de caráter democrático, prezando pela ética, pluralidade de ideias e valores republicanos.