O Paradigma das Pesquisas Eleitorais
Em tempos de ataques à democracia e suas instituições – consolidadas pela Constituição Federal de 1988 – vivemos um novo paradigma que arroga a si o estabelecimento de uma ordem estrutural de pensamento que preconiza a concepção de que as pesquisas eleitorais perfazem o comportamento dos eleitores, tais como estes devem se manifestar nas urnas. Deste modo, é comum que a divulgação dos números obtidos nas consultas prévias aos eleitores influenciem o resultado dos pleitos sem que haja uma contraposição ao modus operandi dos institutos de opinião e seus sistemas metodológicos de entrevistas.
Nesta perspectiva, em tempos em que impera a tendência do politicamente correto, obsta à análise crítica da epistemologia das pesquisas eleitorais, bem como à contestação aos efeitos-resultados destas o pseudo academicismo que atende à fenomenologia de um sistema partidarista e fisiológico. O simples ato de questionar os índices de determinadas pesquisas carrega a pecha de extremismo e fundamentalismo, estabelecendo um rito paradigmático que pressiona o próprio equilíbrio democrático, haja vista a hegemonização de uma única anfigamia dentro dos círculos políticos.
Para tanto, em favor da reflexão lúcida e crítica, visitemos algumas inexatidões de diversas pesquisas que, em dado momento, deslocaram votos por força de divulgações açodadas e sem revisão do método de que constam dos levantamentos dos dados.
Em 2020, por ocasião do segundo turno do pleito para a eleição majoritária, o Ibope, em média a 2 dias antes das disputas, divergiu do resultado oficial obtido nas urnas em 15 municípios. Um exemplo foi Caucaia, no Ceará, em que o instituto supracitado apontava vitória de Naumi Amorim (PSD), com 62% dos votos válidos. O vencedor, no entanto, foi Vitor Valim (PROS), com 51%. Em Porto Alegre, capital gaúcha, houve a indicação de empate dentro da margem de erro entre Manuela (51%) e Sebastião Melo (49%). Melo venceu com 55 % dos votos válidos.
Em Fortaleza, Sarto (PDT) obteve vitória, ficando com 52% dos votos, com 9 pontos a menos do que indicava a pesquisa do mesmo instituto. Goiânia, por sua vez, teve como prefeito eleito Maguito Vilela (MDB), com 53% dos votos, contra 59% indicados pela pesquisa. Por fim, o Rio de Janeiro, teve como prefeito eleito Eduardo Paes (DEM), com 64% dos votos, contra 68% apontados pela pesquisa. Em todos os casos aqui mencionados, houve imprecisões além da margem de erro indicada pelo instituto. Outras inconsistências houve em Boa Vista – RR, Campos – RJ, João Pessoa – PB, Porto Velho – RO, Vitória – ES dentre outros municípios.
A presidente do Ibope Inteligência, Márcia Cavallari, desculpou-se pelas divergências, questionando a necessidade de se entender melhor os perfis dos eleitores, até mesmo a amostragem colhida pelas pesquisas.
O Datafolha, por sua vez, errou em 4 apontamentos divulgados na véspera da eleição. Dentre elas, a maior diferença foi em Recife – Pernambuco, cuja pesquisa mostrava João Campos (PSB) empatado com Marília Arraes (PT). O pleito acabou com o candidato do PSB eleito com 6 pontos à frente da petista, além da margem de erro indicada pelo instituto. Outras diferenças ocorreram em Fortaleza – CE, Rio de Janeiro – RJ e São Paulo – SP.
Falar em erro dos institutos é uma equivocidade, pois as pesquisas são feitas nos dias anteriores aos pleitos. Muitas disputas podem ter seus cenários alterados em 1 ou 2 dias após os levantamentos.
Alguns fatores, no entanto, ajudam-nos a entender com maior clareza as contradições vistas nas pesquisas. Um deles é a desatualização da base censitária. Isso porque os últimos dados demográficos de que dispomos foi realizado pelo censo de 2010. Isso faz com que os institutos tenham certa dificuldade em trabalhar com o perfil do eleitorado como um todo. Como exemplo, os entrevistados não podem ser muito mais velhos do que o resto da população, o que altera significativamente o mérito da análise do levantamento dos dados das pesquisas.
Outro importante motivo para imprecisões é o aumento das abstenções. O ano de 2020, em plena pandemia, marcou importantes índices de não votantes, e isso, para uma pesquisa, é fundamental à análise de seus números, pois o que interessa aos institutos é quem vai votar, não quem pode votar.
Ademais, em 2020, devido ao cenário de vulnerabilidade social, econômica e sanitária, o eleitor demorou mais para decidir o voto que em outros anos. Isso alavancou diferenças significativas em relação aos pleitos anteriores.
Mas, afinal, seriam confiáveis os institutos e as pesquisas eleitorais por eles realizadas? Sem dúvida, SIM. Entretanto, é imprescindível a compreensão de que nenhuma pesquisa reflete necessariamente o voto do eleitor, mas uma tendência de comportamento, que poderá sofrer mudanças a depender de inúmeras contingências. Não existe má-fé nos levantamentos, mas é fundamental que o eleitor não paute o seu voto a partir de levantamento prévio da opinião de outrem, pois a democracia é construída pela liberdade e consciência individual, valores inegociáveis ao arregimento do processo civilizatório.
A esse respeito, o Senado da República deixou de votar o novo código eleitoral, que censurava a divulgação de pesquisas às vésperas das eleições, assim como ocorre na França, 1 dia antes da eleição, e no México, 3 dias antes da eleição. O Chile é ainda mais restritivo, proibindo divulgação de pesquisas 15 dias antes do pleito. O Brasil, com a manutenção da legislação atual, segue o exemplo dos Estados Unidos e Reino Unido.
Tal ato atestou a importância de se analisar os números para que se envidem esforços para a conquista do eleitorado e, de igual modo, permita-se antecipar a tendência de voto do eleitor.
Doravante, consideremos as pesquisas como elementos dotados de multifacetadas variáveis, incógnitas e passíveis de divergências e imprecisões. Contestações de metodologias e resultados não podem causar estremecimento ideológico, como se o simples gesto de duvidar dos expostos equivalesse a uma convergência política engajada. Nisso reside o fundamentalismo, pois a ciência tem seu nascituro do questionamento e da inquietação. Dilapar o direito de interrogar os institutos de opinião e suas pesquisas equivale a coibir a dialética do pensamento e o processo de construção de conhecimento, ensejando o despotismo academicista, de modo a perpetuar o pragmatismo político nos plurais espectros sociais.
Não deixemos de reivindicar o direito à liberdade de pensar e expressar. Sobre isso, nada mais sui generis que a frase célebre de Aristóteles: “É livre aquele que tem em si mesmo o princípio para agir ou não agir, isto é, aquele que é causa interna de sua ação ou da decisão de não agir”.