O poder da Resiliência
Voltar a si mesmo, ditoso, bem-afortunado, apesar das intempéries da vida, é para poucos, e exige perene exercício de desprendimento e abnegação.
Em razão disso, por muito tempo em nossas vidas, somos compelidos a simplesmente existir, causando torpor em relação à abjeta necessidade de subsistir, reptar, mesmo em circunstância antagônica e que nos impõe o desafio de sobrepujar os obstáculos.
Chamo à baila o exemplo da novela de José, filho de Jacó e Raquel, patriarcas hebreus, cuja narrativa é descrita nas páginas das escrituras sagradas, no livro do Gênesis.
Filho dileto de Jacó, José sempre foi promissor, o que, constantemente, suscitava a inveja em seus irmãos, levando-os a, em certo momento, em atitude de impropícia estultícia, vendê-lo a mercadores ismaelitas, escondendo o fato de Jacó. Estava escrito o primeiro encarceramento de José, a exclusão do seio familiar.
O enredo segue, com tratos e distratos, tendo José servido como escravo do Faraó Apopi I. Possuindo beleza inefável e presença gentil, José foi elevado ao mister do cuidado da casa e administração de bens do regente monarca do Egito. Isso entorpeceu de desejos a Potifar, a esposa do rei, que, com galanteios, tentou seduzi-lo, ao que José negou.
A novela, em seu universo diegético, segue, com José sendo traído por Potifar. A prisão, a esta altura, foi seu segundo encarceramento. José estava, mais uma vez, privado de sua prerrogativa mais basilar, a liberdade.
Os anos passam, e José prova lealdade ao interpretar os sonhos de Faraó, conquistando novamente o coração do monarca. Estava sendo gestado o gran finale. Como todos sabemos, José teve o privilégio de, após áridos anos de sofreguidão e encarceramento, alimentar seus outrora traidores irmãos e tornar-se governador do Egito.
Mas, perguntariam os prezados leitores: – Em que se encaixa o perfilamento da supracitada personagem bíblica ao tema em pauta? A resposta é objetiva: o exemplo retirado do contexto escriturístico é o fausto ensejo de catarse para derriscar nossos infortúnios e aplainar nosso sentimento de pertença à vida.
Os encarceramentos a que a vida nos leva não podem aprisionar mentes e corações, pois são nosso mundo imaterial mais fértil e poderoso. Nietzsche, lúcido filósofo alemão, propõe: “As grandes épocas de nossa vida são aquelas em que temos a coragem de rebatizar nosso lado mau de nosso lado melhor”. A escola filosófica alemã premia, no contexto pós-moderno, principalmente pós-segunda guerra mundial, em que houve crescimento exponencial do existencialismo filosófico, a humanidade com holísticos exemplos de prosperidade da alma em sua nudez, simplicidade e crueza.
Viajemos juntos na história, ao lembrarmos de Alfred Bernhard Nobel, que iniciou seus experimentos científicos na empresa de seu pai, com o uso da nitroglicerina, com objetivo de torná-la adaptável à dinamite. Fracassou de modo retumbante, pois o mundo não estava preparado para a genialidade de um homem além de sua época. A azáfama do julgamento popular não se deu conta do avanço tecnológico a serviço das grades obras de engenharia que seriam possibilitados com a dinamite. Estava feito o encarceramento de mais um notável pensador.
Destarte, obstinado por seu sonho de legar à humanidade um pouco de alma, Nobel aventou um prêmio, que leva seu nome, aos mais proeminentes cientistas. A volta por cima estava posta aos olhos do mundo.
Celebra-se, todo ano, a entrega do mais meritório prêmio da academia, a saber, o prêmio Nobel. As artes e a ciência são, notadamente, elevadas a um patamar dantesco e homérico ao receberem a láurea premeditada por Nobel.
Jesus Cristo, celebrado pela cultura judaico-cristã como filho de Deus, e pelo islamismo, como grande profeta, mostrou, na morte e ressurreição, o como se vive eternamente, abdicando da pessoa divina para viver às expensas do sofrimento humano.
Isso posto, prezados leitores, percebe-se que grandes pessoas são feitas de resiliência. As cicatrizes deixadas pelas açodadas reprimendas, rejeições e maledicências de outrem não podem moldar o que somos, tampouco erigir lôbrego empecilho que nos entorpeça e impeça de crescermos.
Ao repaginarem suas vidas e excelerem-se, José, hebreu, Alfred Nobel, da Suécia, Cristo, da humanidade, reverberaram o poder da autoafirmação, deixando o encarceramento preso em si mesmo, demonstrando superação e sobrepujamento diante das afrontas de um círculo social que não estava preparado para a robustez de almas elevadas.
O poder de elevar a própria alma e não sucumbir às infortúnias adversidades da vida são características indeléveis de pessoas, homens e mulheres, notadamente transcendentes, engenhosas, prodigiosas e grandiosas.
Perder a batalha jamais equivalerá a ser derrotado na guerra. Vanguarda para isso é a ciência, em tempos de obscurantismo; é a Educação, em época de negacionismo; é a Humanidade, em momentos de pandemia e perda de confiança no ser humano.
José Saramago, em seu estupendo “Levantado do chão”, ensina: “ Não faltam cores a esta paisagem. Porém, nem só de cores. Há dias tão duros como o frio deles (…)”. A paisagem, para Saramago, sempre foi notívaga, às vezes, mas jamais deixou de clarificar mentes livres, sublimadas e auspiciosas.
Perdemos, prezados leitores, diversas batalhas, pelas quais nos vemos desafortunados, mas sempre expectamos a metafísica da fé, do altruísmo e da elã, da vivacidade e da gana de fazer-mo-nos vistos pelo que somos, construímos e sonhamos.
Valham-nos vida e liberdade nos momentos em que se fizerem necessárias, pois serão, deveras, muitos, mas jamais percamos a perspectiva da áurea da esperança de sermos nós mesmos, seja ao preço que for, ou à custa do desprendimento da razão alheia.
Meditemos nos versos memoráveis de Vicente de Carvalho:
Essa felicidade que supomos,
Árvore milagrosa, que sonhamos
Toda arreada de dourados pomos,
Existe, sim: mas nós não alcançamos
Porque está sempre apenas onde pomos
E nunca pomos onde nós estamos.