Domingo, 28 de Abril de 2024

Coluna Lettera: ‘Como Pássaros Livres’, por Francielly da Rosa

2024-03-12 às 15:00
Foto: Freepik/Reprodução

Como Pássaros Livres

Quando as aves cantarolavam no alto do dia, acordei, ainda sem saber se era sonho ou realidade. Repousadas nos fios negros que entrecortavam o cenário azul do céu, elas iam tecendo a melodia de uma nova MPB. Sentei-me na cama como a menina de outrora que acordava ainda nas friagens da manhã no aconchego do lar dos avós. O quintal da casa, possuindo as mais variadas árvores frutíferas, atraía a passarada que se alvoroçava nos galhos, promovendo um despertar cheio de cantos e encantos. Mais tarde, já estava correndo na rua poeirenta, cobrindo de terra vermelha os dedos dos pés gordinhos que, vez ou outra, apareciam ralados de algum tropeço ocasionado em uma brincadeira ou da quina de um móvel.

Certa feita, meu avô, tendo encontrado uma grande colmeia no topo de uma das árvores que povoavam o terreno, decidiu que queria o seu mel. Uma colmeia majestosa, robusta, lar de pelo menos mais de mil e algumas abelhas!

Tendo ficado encasquetado com a bendita ideia, correu para a casa e pegou o estilingue, enquanto eu e minha prima observávamos atentamente. Tomamos nossas posições no meio da rua, que era o melhor lugar para a mira, e ele tentou. Uma vez. Nada. Apenas os pássaros apavorados tratavam de escapulir. Outra. Agora foi perto. Mais uma e mais uma. Quase! Agora! E a colmeia veio abaixo em uma queda que fez o pesado embrulho se espatifar e se dividir ao meio. Uma nuvem negra logo se formou e nós corremos. Corríamos em um alvoroço como aquele que os pássaros promoviam a cada manhã, gritando e gargalhando, rindo até formarem-se lágrimas nas bordas dos olhos. Tristeza para as pobres abelhas que teriam que tecer outra morada, enquanto nós nos fartávamos de um mel que só pela aventura fez-se ainda mais saboroso.

Aquela rua e aquelas árvores ainda assistiram a muitas outras correrias, gritos e risos, até que não nos viram mais, pois, assim como os pássaros, saímos do ovo, do ninho e fomos ganhar o céu, livres, descobrindo a morada de outros galhos, mas nutrindo no âmago do peito as saudades da árvore-mãe.

Os pássaros! Sim! Foram os pássaros que me acordaram as memórias. Lembro-me ainda do recente fim de semana, sentada no gramado diante das águas do parque, enquanto os pensamentos pairavam no alto das ramagens verdes, voando por entre as nuvens para tocar com a ponta dos dedos um infinito azul.

Numa das árvores altas, um ninho vazio. Quem é que morava ali? Pensei. Quem sabe alguém que, tendo deixado o ninho, ganhou a liberdade do céu. Um céu de possibilidades infinitas, convidativo, de curiosidades e mistérios mil. O pensamento agarrou-se à minha memória de forma a me trazer saudades das meninices. Sorri. No caminho de volta para o hotel, enquanto o cenário verde e azul se estampava ao longe, olhei as aves sobrevoando e resolvi abrir também as minhas asas. Olhei para Marcelo com um sorriso transpassado de orelha a orelha e puxei-o pela mão.

Vamos! E corri. E ele veio sorrindo e sem entender nada. Cruzamos a pista de caminhada, deparamos com o gramado molhado a sujar a sola dos nossos sapatos. Voamos de um lado ao outro do parque. Sorrindo. Voando. Paramos. Parada brusca diante da pista de ciclismo, já que a euforia fizera-me esquecer de prestar atenção ao fluxo de bicicletas. O ciclista cantou os freios, enquanto eu ria e nada me parava o riso frouxo. A outra ciclista xingando, bufando. Logo continuaram o ciclo e voltamos a abrir as asas. Atravessamos. Atravessamos para descobrir que o outro lado do gramado verde ocultava um barro negro e molhado que terminou por cobrir a alvura dos nossos pés. Ele sorria e arregalava os olhos diante da sujeira. Limpar os pés no gramado era inútil, já que o gramado era puro barro. E eu a me divertir profundamente com tudo.

O tempo nos afasta do ninho, uma ausência necessária para o crescimento pessoal, mas, por vezes, também nos afasta do canto dos pássaros, canto que antes nos despertava e hoje se confunde aos barulhos da rotina, da mente. Os encantos se esquecem, não se notam. Logo um ninho em uma árvore é apenas mais um ninho. Não há lembrança. O dia e o tempo exigindo sempre de nós, sem que haja tempo. Tempo. Mas… que é o tempo? Que é feito de tanta coisa de nós que ficou perdida pela estrada, a começar pelo brilho dos olhos, a liberdade de abrir as nossas asas e simplesmente voar! Voar para um além de si, para além da rotina fatigante, da vida monótona. Foi naquele momento que percebi isso. Naquele momento em que éramos nós os pássaros livres do alto do céu, redescobrindo no peito já tão gasto as traquinagens da criança de ontem. Descobrindo o ninho vazio e o céu azul de nós. Percebendo na ausência o crescimento, a descoberta e a felicidade de alçar novos e altos voos, mas sem que se perca com isso as alegrias do bater de asas e dos gorjeios de outrora.

Coluna Lettera

por Francielly da Rosa

Francielly da Rosa é graduada em Letras Português e Inglês pela Universidade Estadual de Ponta Grossa. Atualmente, é mestranda do Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem, com ênfase em estudos literários, também na UEPG. Ela é escritora, cronista e coautora do livro "Crônicas dos Campos Gerais". Descobre, entre as palavras que lê e escreve, a motivação que sustenta seu viver. Escreve crônicas, contos, poesias e, às vezes, se aventura no gênero romance. Além disso, participa de projetos de incentivo à leitura e de outras atividades culturais. Possui diversas crônicas premiadas e publicadas em jornais e sites locais. Em virtude de seu trabalho como escritora, recebeu duas moções de aplauso da Câmara Municipal de Ponta Grossa. Também foi premiada no Festival Literário de São Caetano do Sul, na categoria miniconto, sendo a única representante da cidade de Ponta Grossa.