I
Quando pequeno, minha mãe contava histórias até que eu pegasse no sono sem medo do escuro:
“— Esse lugar, filho, era campo, plantação e mato com onça e pinheiro gigante. A vida era gostosa, não havia ônibus, televisão, nada. À noite a gente olhava a lua, as estrelas, tinha mais estrelas naquela época. Hoje vemos chaminés, asfalto, luzes, mas as estrelas sumiram.
Na baixada além do rio, meu pai plantava melancia, cada melancia linda, terra boa, a fruta crescia depressa sem adubo ou veneno! Pois certa noite deu vontade de passear na roça. Então saí, procurando os seres da escuridão: coruja, morcego, boitatá. Eu era uma menina corajosa.
Andei… atravessei o rio… Andei. E me bateu um sono danado.
Deitei ali mesmo, no chão, no meio do melancial, e dormi, sabe Deus por quanto tempo dormi. Quando acordei a noite era um tiziu, nada de lua no céu, nenhuma estrela. Acendi o velho isqueiro que o vovô me dera e vi tudo vermelho, quase sangue, apenas uns pontinhos pretos nem um pouco parecidos com estrelas. E o local era úmido, molhado. Passei a mão na coisa, senti uma maciez bem conhecida, aspirei o cheiro delicioso.
Eu estava dentro de uma melancia!
Sim, a melancia cresceu tanto, cresceu rápido, ficou enorme e me engoliu! Eu estava dentro da melancia.
E agora, como sair?
Pulei, me bati, gritei e nada! … Enfim me lembrei da pequena faca que eu guardava em casa, no armário. Saí correndo, atravessei o rio, peguei a faquinha, voltei, cortei a melancia e fugi, me mandei de dentro dela.
Ao me livrar da melancia, meus olhos arderam igual fogo, o sol brilhava no céu. Era mais uma manhã, como outra qualquer.”
II
Assim mamãe me fazia dormir. E, muitas vezes, perdi o sono tentando entender como a menina, presa na melancia, conseguira pegar a faca que estava do outro lado do rio, na casinha de madeira. Não sei onde surgiu esse causo, se foi invenção de minha mãe, de seus pais ou dos pais de seus pais, talvez seja folclórico, nunca encontrei nada sobre isso. Já adulto, eu repetia os mesmos feitos para meus filhos, mas como o herói da aventura. Eles gostavam e também perguntavam: “Como você saiu pra pegar a faquinha, pai? E por que voltou pra dentro?”
A vida tem seus mistérios, e a literatura é um bom atalho, se não para decifrá-los, ao menos para reconhecê-los. O fato é que os filhos cresceram, e nunca mais lembrei do assunto. Hoje, todavia, sonhei com isso. Vi mamãe ao meu lado, sua voz doce, depois ela virava criança, dormia na lavoura, e veio a imagem da menina com a faquinha, escapando de dentro da melancia. Acordei de repente, sem fôlego, como se eu tivesse vivido aquela façanha. Assustado, ainda meio tonto, quase gritei:
— Mãe, descobri! Eu sei como que a senhora pegou a faquinha!
Mas mamãe já não está mais aqui para me ouvir, para falar de estrelas e tirar meu medo da noite. Há anos ela se foi, partiu para a grande noite de onde não há como fugir. Com o coração aos pulos, e tendo decifrado minha esfinge, fui ao banheiro achando-me filósofo e pensando em quanto complicamos as coisas. Tudo é simples, os segredos da vida cabem todos numa melancia, assim como as respostas.
Mas e os segredos da grande noite?
Pobre homem, doutor em ignorâncias, não sou mais aquele menino: cresci, envelheci. Hoje meu medo é maior. De novo confuso, abri as janelas do quarto, senti o vento no rosto e abracei mais um dia, um dia como outro qualquer, único, o dia de hoje. Sim, apesar da noite, apesar da grande e terrível noite que levou minha mãe, o sol sempre nasce, toda manhã o sol nasce, arde nos olhos, engana o breu, alimenta as melancias e nos fala de vida.
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Luiz Fernando Cheres é escritor, autor de “Um Beijo Longe dos Lábios” e “Amar não é Preciso”. Ocupa a Cadeira nº 11 na Academia de Letras dos Campos Gerais.