Nesta segunda-feira (14), véspera do aniversário de Ponta Grossa, o médico, operariano e professor do curso de Medicina da Universidade Estadual de Ponta Grossa, Renato van Wilpe Bach, apresenta aos ponta-grossenses uma obra rara e pouco conhecida da identidade local: “Numa Pequena Cidade do Grande Mundo”, escrita por Judith Dantas Pimentel. Um capítulo do livro será publicado amanhã no site e redes sociais da UEPG.
“Numa Pequena Cidade do Grande Mundo”, Judith Dantas Pimentel, edição do autor, 1971.
“Não sei se alguém já dedicou um livro a uma cidade; que as dedicatórias a gente lê e esquece-as. Este, eu o dedico a minha cidade, toda em ladeiras, onde vivem meus vivos queridos, onde dormem meus mortos amados, e onde eu dormirei também para todo o sempre.”
O livro era apenas mais um, dos inúmeros, que passavam de mão em mão pela família, começando por meu avô, consumidor voraz e compulsivo de todo tipo de literatura, depois por meu pai, que lhe herdara o gosto pelas letras, até chegar a minha vez.
Nem tudo que o velho Kiko e meu pai, Nino, liam, contudo, era apropriado para minha idade – apesar da precocidade com que descobri Jules Verne, Victor Hugo e Mark Twain. Alguns volumes ficavam nos armários, longe da minha vista, inacessíveis. O livro da autora ponta-grossense, porém, fora-me logo franqueado, e com entusiasmo, pelos dois, pai e avô, sem saber que encerrava ali sua viagem pela família. Conservo-o até hoje, encontrando nas páginas de rosto a anotação feita por meu avô (“Ponta Grossa, 7 de junho de 1971, Kiko”), minha própria assinatura de criança, já bem próxima ao que é hoje (eu tinha uns doze anos) e um carimbo de médico com meu número de registro no Rio de Janeiro – sinais indeléveis do sentimento de posse, do afeto com que temia emprestá-lo ou perdê-lo, relíquia que é de uma época que não vivemos.
Meu avô se foi, há décadas; meu pai continua sendo um leitor voraz, não creio que o tenha lido desde os anos oitenta; o pequeno volume permaneceu comigo, numa pequena cidade do grande mundo, talvez seu único leitor. Depois de acompanhar-me nas andanças da vida, voltou junto para Ponta Grossa, onde nasceu e permanece esquecido; para muitos, insuspeito desconhecido. Volta e meia o releio, como quem precisa visitar velhos amigos.
Nunca tive dúvidas: trata-se de um grande livro. À guisa de contar a história da chácara da família Dantas, e da pequena aventura comercial que o pai da autora viveu ao trocá- la pela cidade e pelo “Pingo de Ouro”, armazém de curta sobrevida que ficava em frente ao (então Grupo Escolar) “Senador Correia”, Dona Judith, nascida em 1912, desfia histórias da família e dos vizinhos, narra causos de amor perdido e achado, fala dos ciganos, dos bordéis e dos comércios, tudo com muita sutileza, sombreando o texto com tintas de poesia e até mesmo certo realismo fantástico, anacrônico e precoce.
Pelo assunto e formato, poderíamos confundir “Numa Pequena Cidade…” com tantos outros memoriais familiares de interesse restrito, mas o livro vai além, construindo personagens e tramas que se entrelaçam ao longo do arco dramático, com verdadeira estrutura de romance; começo, meio e fim. Em suas páginas sobressai um lirismo contido, certeiro e coloquial, que enfeita a dureza da vida com versos, de tempos em tempos, sem cair na pieguice ou forçar o enredo.
O amor pela literatura, no caso de Dona Judith, era herança familiar. Não por acaso, a primeira romancista de Ponta Grossa, Emília Dantas Ribas (1907-1978), era sua irmã, tendo publicado seu “A Primavera Voltará” (Editora Guaíra Ltda., Curitiba) em 1949.
Em comum, o apreço pela cultura, através do qual a família Dantas legara três grandes educadoras à cidade: Emília, Judith e Marcelina. Era o caminho, na época, para moças de fino trato que almejavam uma carreira intelectual. E foram absolutamente vitoriosas em seu intento, atuando no magistério de forma exemplar, em nível estadual, Emília como a primeira diretora da Escola de Professoras do Estado, a segunda cumprindo importante papel na implantação de escolas em Santo Antônio da Platina, Maringá e Londrina, através da Secretaria de Educação, formando gerações de alunos e professores.
Enquanto Emília teve seu romance reconhecido (e premiado) pelo Centro de Letras do Paraná, ainda nos anos 1950, sendo notável sua rápida absorção pelo círculo da intelectualidade curitibana (posteriormente como titular da cadeira número 30 daAcademia Feminina Paranaense de Letras), Judith só publicaria “Numa Pequena Cidade…” tardiamente, em pequena edição local a que poucos tiveram acesso.
São hoje lembradas, as irmãs, mais por seus importante papéis na história do ensino no Estado do Paraná que pela escassa produção literária.
“Numa Pequena Cidade do Grande Mundo”, de Judith Dantas Pimentel, merece destino melhor. Desfilam em suas páginas mais que meros lampejos de memórias, mais que a história da chácara e da família Dantas, mais que excertos de um período importante da história de Ponta Grossa, em que a cidade cresceu e assumiu muitas de suas características. Brilha no volume a capacidade de narrar tudo isto com graça, objetividade e talento literário, em um tempo em que ser escritora não era uma opção; em que, para se alcançar o status de intelectual, uma mulher havia que se dividir entre a carreira de professora e os afazeres domésticos, entre o “conservadorismo católico que reforçava marcadores tradicionais de gênero e (…) a defesa (…) do protagonismo das mulheres – incluindo-se das escritoras – na vida pública nacional” (Guebert, discorrendo sobre Emília em 2018).
Que Ponta Grossa, já próxima dos festejos de seu ducentésimo aniversário de emancipação política, possa legar este livro às próximas gerações. Não é tarde para festejar esta mulher plural, como não foi tarde para ela formar-se em Direito aos cinquenta anos de idade, ou publicar seu primeiro e único livro já próxima dos setenta.
Da UEPG