há 8 horas
Giovanni Cardoso
Seja no bloco M, na Central de Salas ou na entrada do Restaurante Universitário (RU), quem frequenta o Campus Uvaranas da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) já está acostumado a encontrar todos os dias algumas figuras carimbadas que, literalmente, vivem por lá. Raquel, Ravi, Marujo e Marcelo são alguns dos quase 40 cães que estabeleceram residência na Universidade. Eles têm nomes, personalidades próprias, e tudo o que eles buscam é um lugar confortável para correr, brincar e tirar um cochilo, com direito a comida, carinho e muita atenção.
A presença de animais abandonados ou errantes é uma realidade nos centros urbanos, e lugares abertos e de espaços amplos são atrativos para a sua entrada. Na UEPG, não seria diferente. Ao longo de décadas, entre tantos cachorros que transitam diariamente próximo ao campus, alguns resolveram entrar e, ao invés de um simples passeio, gostaram tanto que decidiram ficar; outros foram abandonados ou até mesmo nasceram lá. A maioria desses residentes caninos é composta por idosos, que já vivem ali há muito tempo e estão habituados com o movimento da Universidade.
Neste sábado (04), Dia Mundial dos Animais, a UEPG lança oficialmente a campanha “Quem ama não abandona”, e presta uma homenagem aos amigos de quatro patas que convivem diariamente com todos aqueles que frequentam o ambiente universitário. “O objetivo da campanha é destacar o papel do ser humano no processo de proteção. Alertamos donos e tutores para que não abandonem cães no campus, o que é crime. Por outro lado, valorizamos a atuação voluntária de quem atua no cuidado e manutenção dos animais institucionalizados”, esclarece o reitor Miguel Sanches Neto.
Eles são chamados de animais comunitários e recebem esse nome porque não têm um proprietário ou cuidador definido, mas estabelecem um vínculo de afeto com a comunidade e passam a depender do cuidado de diversas pessoas. Na UEPG, um grupo de mais de 30 pessoas, entre alunos e servidores de diversos setores da instituição, integram o projeto de extensão Cão Comunitário, que busca assegurar uma vida digna a esses animais. Os integrantes mais ativos do projeto conhecem de perto cada cão comunitário; sabem seus nomes, em quais lugares costumam ficar e qual a personalidade de cada um.
“A gente tem de tudo aqui no campus. Tem os que são mais dóceis; outros são mais briguentos, não gostam de outros cães e preferem a companhia das pessoas”, relata a servidora da UEPG Lúcia Garrido, uma das voluntárias que atua na frente de cuidado aos animais, e que se dedica a garantir alimentação de qualidade, água fresca, abrigo, cobertas em dias de frio e tratamento veterinário sempre que for necessário; além disso, todos os cães comunitários são castrados, microchipados e vacinados. “O Ravi é um bebezão, é um cachorro enorme e extremamente calmo; o Bernardo é na dele, nunca late, mas ninguém chega perto porque ele é muito arisco; já a Mafalda é quem mais dá medo no pessoal, porque ela é tão medrosa que late pra tudo, mas se tentar chegar perto ela sai na mesma hora”, conta.
À procura de um lar
A vida no campus da Universidade, contudo, ainda não é a ideal, já que os animais estão constantemente expostos ao risco de serem atropelados, maltratados ou de se envolverem em brigas entre eles. Por conta disso, os cães comunitários estão à procura de uma adoção responsável, longe dos perigos da rua. No perfil do Instagram do projeto Cão Comunitário, é possível ver o nome, a fotografia, a história e as características dos cães que vivem na UEPG. O processo de adoção é um dos maiores desafios enfrentados do projeto. Enquanto os filhotes que são anunciados costumam conseguir um lar rapidamente, para os cães de idade avançada e de porte grande essa não é uma tarefa fácil.
“É muito difícil encontrar, até por uma questão cultural, pessoas que estejam dispostas a adotar um cão idoso. A maioria dos cães já está aqui há muito tempo. Então, quando a gente consegue a adoção de algum, a gente faz muita festa”, afirma a coordenadora do projeto de extensão, professora Gisele Brandelero Camargo.
Segundo a professora, o compromisso do grupo vai além de encaminhar os animais para qualquer adotante- é fundamental garantir que tenham um lar adequado. “A gente sempre observa muito bem quem vai adotar. Não queremos que eles sejam adotados só pra tirar da UEPG. Não, a gente não pensa dessa forma. A gente quer sim que os nossos cães sejam todos adotados, mas para que eles tenha uma vida tranquila, com alimentos adequados, sombra, abrigo, carinho, afeto e segurança. Não é para ser adotado e viver amarrado nos fundos do quintal, porque isso também não é digno”, afirma Gisele.
“Antes da adoção, eu faço entrevista com a pessoa, fazemos termo de adoção, queremos saber como é a casa da pessoa, qual o espaço o cachorro terá, somos bem criteriosos em relação a isso”, conta Lúcia Garrido. Ela recorda o caso de Dino, um cachorro abandonado que, por ser idoso, tinha muita dificuldade para se locomover e acabou sendo atropelado por uma pessoa que não parou para prestar socorro. “Depois disso, eu deixei ele na minha casa por um tempo, não queria trazer de volta à UEPG para que ele não corresse o risco de ser atropelado de novo. Mas não tenho mais espaço na minha casa, porque tenho 16 cães, então comecei a procurar alguém para adotar.” Por sorte, uma aluna da Universidade que gostava muito do Dino se ofereceu para ficar com ele, e hoje o Dino vive numa casa espaçosa e já está adaptado ao novo ambiente. Mas esse é um dos milagres, porque a maioria a gente não consegue adoção”, lamenta Lúcia.
Além da idade, outros fatores acabam dificultando o processo de adoção, como lembra Lúcia ao citar a discriminação que ainda existe contra animais de pelagem escura. “A Sol é uma querida, ela é linda, só que tem outro detalhe: ela é preta. E a gente não consegue a adoção de animais de pelagem escura, tanto gatos quanto cachorros. Existe esse preconceito na sociedade. Então, o que nós podemos fazer? Não tem para onde mandar. Enquanto ninguém adotar, ela vai ter que continuar aqui”, disse.
Para aqueles que não têm condições de adotar, mas desejam ajudar um dos quase 40 animais comunitários da UEPG, existe a opção do apadrinhamento. Ao apadrinhar um cão, o padrinho envia um valor mensal para despesas específicas com o animal, como antiparasitários ou cobertas para o inverno, e recebe notícias e fotos do seu afiliado. O processo de apadrinhamento pode ser feito através de contato pelo Instagram. O projeto também aceita contribuições via pix para custear tratamentos veterinários. É o caso de Kelly Rissoles, uma cachorra muito amada por quem frequenta o campus, mas que recentemente foi atropelada e corre o risco de não voltar a andar, necessitando realizar exames e tratamento a um custo elevado.
Sorria, você está sendo filmado
A coordenadora do projeto explica que o trabalho da equipe também envolve lidar com situações delicadas, como casos de abandono e agressões a animais dentro do campus da UEPG. Segundo Gisele, a presença dos cães comunitários torna necessário manter uma atenção constante, mas nem sempre é possível evitar ocorrências de maus-tratos. Nesses casos, o papel do projeto é garantir que possíveis crimes sejam notificados às instâncias adequadas. “Nós estamos sempre de olho, mas a gente não está em todos os lugares, então quando acontece algum caso de agressão ao animal ou abandono aqui dentro do campus, a gente comunica ao CRAR (Centro de Referência para Animais em Risco), que é o órgão municipal competente para essas causas. Quando é necessário, o CRAR solicita via boletim de ocorrência as câmeras de vigilância da UEPG, que por uma questão ética de proteção de dados, a gente não tem acesso. A gente cuida para que não haja crimes, mas quando acontece precisamos denunciar”, explica a professora.
Gisele também esclarece a responsabilidade legal sobre os animais. “Os cães que vivem na UEPG são comunitários, não são meus nem de ninguém que faz parte do projeto. Eles moram aqui. Esses cães, segundo a lei, são responsabilidade do Poder Público”, explica. Ela enfatiza que o papel do projeto é garantir dignidade e cuidados básicos, mas não controlar os quase 40 animais que circulam pelo campus. “Se um dos cães morder alguém, não vai resolver falar com o projeto, porque a gente não controla os cães. Você tem que fazer uma denúncia no CRAR da Prefeitura. São eles que tem que vir retirar o cachorro, não nós”, reforça.
Ao comentar sobre episódios de ataques de cães no Campus Uvaranas, a coordenadora ressalta que, em geral, esses casos não envolvem os cães comunitários. “Geralmente são os cães que estão passando pela rua, percebem o portão aberto e entram, já que não tem uma barreira física para impedir. Então estão transitando por aqui, mas não vivem efetivamente na UEPG”, explica. Segundo ela, esses animais de fora podem entrar em conflito com os cães comunitários que já estabeleceram moradia no campus, o que provoca brigas e situações de risco.
Apesar disso, Gisele observa que o número de cães que residem na Universidade permanece estável há anos e que a maioria deles está acostumada à presença de estudantes e servidores. “Esses cães idosos que vivem aqui não têm nem energia, nem disposição física para sair correndo atrás das pessoas”, afirma.
Amigos de longa data
“A relação entre humanos e animais é uma relação muito bonita que existe há milhares de anos. Os cães têm acompanhado a humanidade de uma forma muito intensa, muito próxima. Essas relações foram se modificando ao longo do tempo, mas eles sempre foram protetores, companheiros e os melhores amigos do homem”, explica a médica veterinária Érika Zanoni, que atua como consultora voluntária sobre o comportamento dos animais comunitários que vivem na UEPG. “No campus, vejo estudantes chamando os cães pelo nome, publicando fotos, e até brinco que alguns deles frequentam mais as aulas do que os próprios alunos”, comenta. Segundo ela, os animais conseguem perceber quando uma pessoa não está bem e oferecem apoio silencioso.
Doutora em Zoologia e pós-doutora em Direito Animal, Érika também se especializou em um campo ainda pouco conhecido no Brasil: a psiquiatria animal. “Quando digo que trabalho com isso, as pessoas acham graça e perguntam se o animal vai deitar no divã. Mas desde 2003 eu estudo comportamento animal e observo que eles também adoecem mentalmente. Maus-tratos, abandono ou mesmo frustrações no ambiente doméstico podem levar a transtornos como depressão, ansiedade ou estresse pós-traumático”, afirma. Grande parte dos cães comunitários da UEPG já é idosa, e esse processo de envelhecimento traz novas demandas. “O animal que envelhece pode perder os dentes, precisar de alimento mais pastoso, ter escapes de urina ou fezes, ficar mais apático e desenvolver doenças semelhantes às humanas, como o Alzheimer”, explica. Para Érika, essas mudanças exigem empatia e cuidado: “Por isso, incentivo que pessoas com condições adotem esses cães, para que recebam atenção mais individualizada e personalizada.”
Ela destaca que, por viverem no meio das pessoas e pelo vínculo que estabeleceram com a comunidade, os cães comunitários estão socializados e desenvolvem um comportamento previsível. “Eles dificilmente se alteram com carros ou motos, porque convivem com esse ambiente diariamente”, afirma. A veterinária diferencia os cães comunitários daqueles que circulam livremente pelas ruas, apesar de terem tutor. “Os cães semi-domiciliados são aqueles cujos donos abrem o portão para eles darem uma volta. Só que esses animais não foram devidamente socializados, porque até o sexto mês de vida precisariam ter contato com pelo menos 100 pessoas e 100 animais diferentes. Sem isso, acabam buscando comida ou até conflito em locais públicos, e muitas vezes causam acidentes porque são animais que não são treinados e não são comunitários, eles têm tutor”, aponta.
Ela acompanha há mais de dez anos a população de cães comunitários e observa que o número permanece estável. De acordo com a veterinária, quando um cão de fora tenta se estabelecer no espaço, pode ocorrer conflito territorial. “Os animais que vivem ali organizam a matilha através de cheiros, posições corporais, músculos e comportamentos. Eles defendem o território, os demais cães e até as pessoas que fazem parte desse ambiente. Só entram em confronto quando percebem risco à alimentação, à reprodução ou ao espaço em que vivem”, explica. A veterinária também faz um alerta contra o abandono de animais dentro da Universidade. “Às vezes alguém de fora vê que os cães do campus são bem cuidados e acaba deixando outro animal ali. Mas isso pode desequilibrar toda a população, gerar brigas por território ou comida. É abandono, e abandono é crime”, reforça. Segundo ela, com câmeras e testemunhas, esses casos podem e devem ser denunciados.
Ao comentar situações de risco envolvendo cães, Érika ressalta que a agressividade é, em geral, uma resposta ao medo. “Os animais muitas vezes se sentem ameaçados por alguns comportamentos de pessoas. A dica que eu dou é mostrar submissão: parar, não correr, não afrontar. Normalmente, o animal vai atacar por medo, porque entende que sua integridade está em risco. Então é importante não jogar pedras, não chutar, não oferecer nenhum tipo de ameaça”, orienta.
da UEPG