Sábado, 04 de Maio de 2024

D’P Artigo: “Tempo de calar”, por Dom Anselmo

2023-09-25 às 11:22

O ser humano é musical. Em maior ou menor escala, toda pessoa gosta de música e vive cercada de sons, algumas vezes desordenados e feios, outras ordenados e belos. Ocorre que uma boa música não é constituída tão somente de sons, mas também de silêncio. Esse silêncio, que na música é chamado pausa, é fundamental. É, com efeito, a sucessão de sons e silêncios, notas e pausas, que faz uma música ser harmoniosa e agradável.

O silêncio é tão importante numa obra musical que, para enfatizá-lo, o compositor estadunidense John Cage compôs uma provocativa e cômica obra, intitulada “4’33””. Apresentada pela primeira vez ao piano em 1952, a partitura é composta tão somente por figuras musicais de pausa, de tal modo que, durante pouco mais de quatro minutos e meio, o pianista não faz soar uma única nota sequer, e os espectadores ouvem apenas o ruído do ambiente e das páginas sendo passadas pelo músico, como se estivesse tocando.

Mas não é somente na música que as pausas são necessárias: na vida também são imprescindíveis. Períodos de pausa, de silêncio, de meditação, são fundamentais para uma vida equilibrada e sadia. Do contrário, torna-se saturada e amarescente. Saturada de barulhos e ruídos. Saturada, inclusive, de si mesma.

Todavia, constata-se que o mundo hodierno perdeu, em grande parte, a capacidade de “ouvir” o silêncio, de “escutar” o que ele tem a dizer. Paradoxal afirmação, mas real. Vive-se cercado de sons, normalmente desagradáveis. O homem e a mulher da sociedade moderna estão comumente imersos em barulho e já não silenciam, não calam, não descansam a audição. Nem mesmo a calada da noite – pobrezinha – existe mais, pois, no fim do dia, expulsa-se o silêncio de casa para dar lugar ao vozerio dos meios audiovisuais.

Em meio a tantos agitos, pouco espaço há para alguma introspecção, para momentos de pensamento e reflexão. Mas é só nesses momentos de pausa que o homem pode se encontrar consigo mesmo, pode meditar sobre a vida, sobre as suas atitudes, decisões, erros e acertos. A falta de calmaria tende a gerar uma fragmentação interior, na qual a pessoa encontra-se desconectada de si mesma. Blaise Pascal, a esse propósito, afirmou: “Eu descobri que toda a infelicidade do homem reside em um único fato: que ele não consegue ficar em silêncio em seu quarto” (“Pensamentos”, 139).

E não há de se duvidar que a pessoa humana é fragmentada. Basta reparar quantas vezes pratica atos que não desejava praticar, sabendo que tal ato é errado e que não o deseja praticar, mas não conseguindo deixar de praticá-lo. Nesse sentido, a confissão de São Paulo, na carta aos Romanos (7,19), é paradigmática: “Porque não faço o bem que quero, mas o mal que não quero”.

É por isso que muitos, desejando alcançar uma unidade interior, procuraram a vida monástica. De fato, em todas as grandes tradições religiosas há alguma expressão de vida monástica, na qual o silêncio e a meditação são característicos. Ora, o monge, palavra de origem grega cuja tradução é “algo só”, “único”, “não dividido”, percebendo-se dividido interiormente, lança mão de uma forma de vida específica com o intuito de unificar-se, tornar-se uno, não fragmentado.

Com efeito, se isso é comum às expressões de monaquismo das diversas religiões, para os monges cristãos há algo mais. Pois, de que adiantaria ao homem estar unificado se, mesmo atingida a forma mais perfeita de si mesmo, ele permanece finito e insuficiente? É então que dá o passo da fé e descobre que somente em Deus, fonte e sustentação de todo ser, é possível encontrar a unificação almejada.

Foi na diuturna vivência da própria vida monástica que os monges perceberam que não era possível alcançar tal objetivo sem fazer silêncio, pois sem ele não se poderia escutar a sua própria alma, o seu coração, a sua psiquê, o seu eu, e, para além, a Deus mesmo, que lhe fala no íntimo da consciência.
Indubitavelmente, o silêncio é fundamental para ouvir o Transcendente, o próximo e a si mesmo. Um diálogo implica sempre, como diz o ditado, que “quando um burro fale, o outro baixe a orelha”. Não é possível ouvir um amigo, um familiar ou a si mesmo sem emudecer.

São Bento – pai do monaquismo beneditino –, por exemplo, atribui ao silêncio grande importância no progresso humano e espiritual. E, embora somente o capítulo sexto da Regra que escreveu para os seus monges seja dedicado exclusivamente a essa virtude, em toda ela ressoa o conselho de que o monge não se afaste do silêncio, devendo entendê-lo não somente no sentido superficial da ausência de palavra, mas como atitude interior, de reflexão e de amadurecimento. Ademais, separa duas realidades próximas, embora distintas: o silêncio e a taciturnidade. O primeiro refere-se simplesmente a não ser barulhento, não agir de maneira ruidosa. A segunda, por sua vez, é a virtude do homem que sabe quando e como utilizar o dom da palavra.

Ambas as atitudes são importantes. O silêncio exterior é necessário para alcançar a disposição interior de ouvir os clamores da própria alma e os sussurros de Deus que misteriosamente se dá a conhecer. Não por acaso, a Regra de São Bento inicia-se assim: “Escuta, filho, os preceitos do Mestre, e inclina o ouvido do teu coração” (Prólogo 1). Os monges não são inimigos da palavra, mas desejam ter um justo equilíbrio entre som e silêncio, para poderem, silenciados, escutar.

A necessidade do silêncio, da meditação, da introspecção, finalmente, não é somente para os monges, mas para toda pessoa que deseja uma felicidade profunda, e não meros paliativos para as suas angústias. Testemunhos variados dão conta dessa necessidade, dos quais basta citar aqui o sábio Coélet (3,1.7), que na Sagrada Escritura assim afirma: “Para tudo há um tempo, para cada coisa há um momento debaixo do céu: […] tempo de calar e tempo de falar”. Eis, pois, que é chegado esse tempo, o de calar!

Num mundo frenético como o de agora, urge que o silêncio e a meditação sejam mais praticados, para que, em meio a tantas trevas, haja luz, pessoas melhores, vidas mais saudáveis, sociedades mais sãs e, para todos, um mundo superno. Assim como o compositor revela, por meio de notas e pausas, os seus sentimentos, anseios, angústias, alegrias e frustrações, também a interioridade humana tem a necessidade de expressar-se através de som e silêncio. As pausas de uma boa música dão um sabor a cada nota, que, por sua vez, formam um conjunto belo e agradável. A cada pausa se entrevê a nota que seguirá, a música recomeça, renasce, algo novo se descobre. E a vida, não se olvide, tem um quê de musical.

Dom Anselmo Giaretta, OSB, monge da Abadia da Ressurreição, em Ponta Grossa

Conteúdo publicado originalmente na Revista D’Ponta #296