O enoturismo é de fundamental importância para regiões vitivinícolas, além de trazer crescimento econômico, proporciona a divulgação da cultura local e da fabricação de vinhos dos produtores da região. Neste artigo, após visitas a várias adegas/vinícolas em Portugal e experiências intrínsecas ao enoturismo, analisei brevemente um quesito em especial: a acessibilidade. Essa é uma preocupação que deve estar presente em todo o mundo e em Portugal escolhi a bela Península de Setúbal para ser contexto do tema, o motivo explicarei adiante.
Conhecer lindas plantações de videiras, uvas diferenciadas, os vinhos provenientes dessas uvas e videiras, se possível ter a possibilidade de fazer uma refeição harmonizada com pratos locais, se hospedar em uma adega (vinícola) com estrutura e que oferece ainda outras atividades! Essas são atividades enoturísticas ideais e acessíveis a quase a maioria de nós apreciadores de vinhos. No entanto, muitas pessoas não têm essa mesma oportunidade, como é o caso dos portadores de necessidades especiais ou pessoas com deficiência, termo oficial citado no Guia do Governo da República Portuguesa.
Frequentemente as condições das pessoas com deficiência são esquecidas e, portanto, ficam inviabilizadas de terem a oportunidade de visitar uma adega ou participar de uma atividade de enoturismo, é o que ocorre com os cadeirantes (quem utiliza cadeira de rodas) e com os deficientes auditivos e visuais por exemplo. É um público que também tem direito de poder vivenciar experiências sensoriais, degustar vinhos, conhecer sobre a cultura vínica e, por isso, decidi escrever e destacar nesta matéria as adegas (vinícolas) que oferecem espaços adequados especificamente para esse público.
Além do projeto arquitetônico adaptado, a acessibilidade tem o objetivo de propiciar uma sociedade mais igualitária. É a garantia de transição a todos, inclusive àqueles que tem algum tipo de necessidade especial ou mobilidade reduzida, em espaços públicos ou privados, sem a presença de nenhuma barreira arquitetônica, isso também significa qualidade de vida para essas pessoas com demandas diferenciadas. Portanto, trago três sugestões de adegas (vinícolas) que oferecem condições adequadas neste momento para usuários de cadeira de rodas na Rota da Península de Setúbal em Portugal.
Por que a Rota da Península de Setúbal? Muitas regiões em Portugal contam com adegas e vinícolas com acessibilidade, mas na visita que realizei, levei comigo um convidado que usa cadeira de rodas, Ricardo Costa Esteves, jornalista e empresário português que aos 17 anos teve um acidente de carro que o deixou tetraplégico, necessitando de cadeira de rodas para se locomover desde então. O endereço da morada do Ricardo fica mais próximo à região de Setúbal, por isso optei por essa localidade, para evitar viagens de longas distâncias e qualquer problema ou indisposição para ele. Juntos realizamos algumas visitas e avaliamos as vinícolas que nos receberam. Para mim foi de fundamental importância contar com a opinião de quem vive diariamente a questão da acessibilidade e que pode contribuir com seu conhecimento.
Península de Setúbal
A Península de Setúbal é uma região vitivinícola portuguesa que oferece rótulos famosos mundialmente, como o Moscatel de Setúbal, somado a outros vinhos tranquilos brancos e tintos e espumantes, além disso a região possui muito enoturismo. Com uma área total de cerca de 9.500ha, a viticultura da região é o somatório de muitas parcelas distribuídas pelos 13 concelhos que compõem o Distrito de Setúbal, sendo a maior incidência em: Palmela, Montijo, Setúbal, Grândola e Alcácer do Sal. As primeiras vinhas da Península Ibérica são datadas cerca de 2.000 a.C., dando início a uma tradição que foi renovada em 1907 com a demarcação da Região do Moscatel de Setúbal e que sobrevive até hoje, sendo a segunda mais antiga região demarcada de Portugal.
Extensa em território e com clima mediterrânico, a Península apresenta clima quente e seco no verão e relativamente frio e chuvoso no inverno. As terras planas são compostas por solos de areia perfeitamente adaptados à produção de uvas de qualidade, bem como por relevo mais acentuado, com vinhas plantadas em solo argilo-calcários protegidos do Oceano Atlântico pela Serra da Arrábida.
A Comissão Vitivinícola Regional (CVR) da Península de Setúbal existe desde 1991 com o propósito de garantir a origem, a qualidade e a genuinidade dos vinhos da região, bem como para assegurar a sua promoção nacional e internacional. A CVR da Península de Setúbal é a Entidade Certificadora dos vinhos da região, emitindo a creditação “D.O. Setúbal”, que inclui o Moscatel de Setúbal e o Moscatel Roxo de Setúbal, “D.O. Palmela” e a “I.G. Península de Setúbal (Vinho Regional)” presente em diferentes vinhos brancos, rosados, tintos, espumantes, frisantes e licorosos da região. A presença destas denominações nas garrafas é a sua garantia de qualidade. São vinhos selecionados cujos selos garantem verdadeira confiabilidade.
Rota da Península de Setúbal
A Península de Setúbal possui a sua Rota de Vinhos representada pela Casa Mãe da Rota que está localizada no coração da vila de Palmela e é uma antiga adega que surpreende o visitante pela beleza interior do edifício. A organização completou 22 anos e funciona como uma central de reservas para visitas guiadas nas adegas e a outros locais como os centros de artesanato, queijarias, patrimônio edificado ou atividades como observação de golfinhos ou passeios de barco pelo Sado. Na Casa Mãe fui recebida pela técnica de enoturismo Fátima Silva que explicou sobre todas as atividades desenvolvidas pela instituição e me ajudou nas reservas de adegas/vinícolas com acessibilidade que pudessem também recepcionar Ricardo.
A Casa Mãe da Rota de Vinhos funciona também como loja dos vinhos certificados com Indicação Geográfica Península de Setúbal e Denominação de Origem Palmela e Setúbal. É possível adquirir e degustar os melhores vinhos na loja da Casa Mãe que também oferece uma diversidade de produtos regionais de qualidade, pastéis, bolos, compotas e geleias de frutas, manteiga de ovelha e queijo de Azeitão de Denominação de Origem Protegida, mel e chás biológicos.
Filipe Palhoça – Quinta da Invejosa
Tudo começou em 1950, quando Filipe Jorge Palhoça fundou esta empresa familiar dedicada à produção de vinhos na Península de Setúbal com origem numa pequena adega pertencente ao seu pai, João Loureiro Palhoça. Em 1984, foi construída a moderna adega na Quinta da Invejosa onde, em meados da década de 1990, a família iniciou o engarrafamento de vinho com marca própria. Filipe Palhoça tem três marcas e trabalha com as castas típicas da região como Arinto, Castelão, Fernão Pires, Moscatel Graúdo ou Moscatel Roxo, e ainda algumas das melhores variedades internacionais como Cabernet Sauvignon, Merlot e Syrah. Quem nos recebeu foi a nora de Filipe Palhoça, Marta Palhoça, que nos conduziu em toda a adega.
O processo de acessibilidade já começa no estacionamento do estabelecimento a ser visitado. A Quinta da Invejosa oferece estacionamento amplo e plano para que seja possível estacionar com facilidade, assim como espaços laterais para abertura das portas, para retirada e montagem dos equipamentos e transporte do usuário para a cadeira.
Já na entrada a estrutura e decoração são encantadoras, a mesa da recepção foi feita exatamente em uma altura adequada para que cadeirantes também possam ser atendidos fazendo seus pedidos e pagando suas despesas confortavelmente. Marta Palhoça, gerente da adega/vinícola, nos levou às instalações internas para conhecer o processo de vinificação, envase e armazenamento dos vinhos. Na parte externa pudemos visitar algumas vinhas cultivadas já na entrada da Quinta, onde os proprietários mantêm uma espécie de jardim de videiras para que os visitantes possam conhecer as variedades e seu desenvolvimento. A Quinta da Invejosa conta com banheiros totalmente adaptados, elevador para acesso a sala de eventos e degustações e mesas com dimensões adequadas para entrada de cadeira de rodas na parte inferior do móvel.
Segundo Marta Palhoça, “a acessibilidade é de fundamental importância até mesmo porque não sabemos qual será nossa condição amanhã, queremos receber bem as pessoas e por isso há essa sensibilidade da nossa parte para receber a todos que tenham interesse em nos visitar”, destaca. Marta ainda comentou que já receberam visitas na Quinta de deficientes visuais que também tiveram a oportunidade de ter experiências.
Bacalhôa Vinhos
Atualmente a Bacalhôa Vinhos produz em diversas regiões vinícolas portuguesas: Alentejo, Península de Setúbal, Lisboa, Bairrada, Dão e Douro. Com um total de 1200 ha de vinhas, 40 quintas, cultivo de 40 castas diferentes, uma capacidade total de 20 milhões de litros, 15.000 barricas de carvalho e 4 centros vínicos (adegas), a empresa distingue-se no mercado pela sua dimensão e pela autonomia em 70% na produção própria. A cada uma das entidades que constituem a Bacalhôa Vinhos de Portugal S.A. — Aliança Vinhos de Portugal, Quinta do Carmo e Quinta dos Loridos — corresponde um centro de produção com características próprias e um patrimônio com intrínseco valor cultural.
Estivemos na sede da Bacalhôa, localizada em Azeitão na Península de Setúbal, no local está a adega central, a Loja de Vinhos e os jardins onde sobressaem as suas oliveiras milenares. A Bacalhôa Vinhos de Portugal instalou-se, desde 1997, na zona vitivinícola de Azeitão, no “coração” da Península de Setúbal, num edifício emblemático, pois trata-se de um hexágono envidraçado onde se encontraram soluções inovadoras ao nível do projeto e da execução, quer na zona da adega, quer na zona de escritórios. Revelam uma criatividade e um sentido de eficácia que se casam com o ambiente mágico e tradicional das caves onde repousam milhares de garrafas e uma verdadeira armada de barricas de estágio do vinho. Este hexágono está rodeado por um conjunto de jardins com espécies botânicas de origens bem diferentes, esculturas, ruínas, painéis de azulejos, loja de vinhos, vinhas, um lago com um conjunto de espécies de patos e peixes e, claro, diferentes zonas de produção e estágios de vinhos.
Na sede ainda encontramos a Bacalhôa Adega Museu, um projeto implementado sob o tema “Arte, Vinho e Paixão”, onde os visitantes têm a oportunidade de conhecer coleções de arte divididas em grupos temáticos:
1 – Out of Africa é uma exposição dedicada à Rainha Ginga e a três Maravilhas Paisagísticas de Angola: as Pedras Negras do Pungo Andongo, a Fenda da Tundavala e as Cataratas de Kalandula.
2- Geração Esquecida dedicada a três artistas marcados pelo período do Holocausto, sentido na pele e vincado na tela pelo fato de serem judeus: Erich Kahn (1904-1980), Eugen Hersch (1887-1967) e Fritz Lowen (1893-1970). O despoletar da II Guerra Mundial interrompeu abruptamente o percurso já estabelecido destes artistas que se viram forçados ao exílio na Inglaterra, abandonando não só sonhos, mas também familiares, amigos e toda uma vida alcançada com o seu trabalho.
3- Azulejos portugueses do século XVI ao XX usados de forma tão exuberante e sem paralelo em qualquer país europeu, os azulejos, que proliferaram durante mais de cinco séculos em Portugal, acabaram por se tornar num contributo genuíno para o patrimônio cultural e artístico do país.
Todas as instalações visitadas são planas, a entrada do museu conta com rampa e alguns dos expositores com cartas, fotos e objetos dos artistas da Geração esquecida que estão expostos em balcões de vidros com altura apropriada para que cadeirantes também possam enxergar. Foi possível, ainda, visitar a sala de barricas e, ao final, como em todas as adegas/vinícolas, foi realizada a degustação de vinhos com três rótulos.
Venâncio da Costa Lima
Venâncio da Costa Lima nasceu em 1892, na povoação de Quinta do Anjo. A aldeia é de fortes tradições rurais, Quinta do Anjo é conhecida como terra de bom queijo, pão e vinho. Entre os anos 1930-1950, a Venâncio da Costa Lima era a segunda maior produtora de vinho da região e é considerada uma das adegas mais antigas da região de Palmela que vai para a quarta geração, é produtora de vinhos de mesa, vinhos certificados (Regional Península de Setúbal e DO Palmela) e Moscatel de Setúbal. Entre seus principais objetivos está o de produzir vinhos atuais e modernos, mantendo sempre o perfil e as características de um vinho da região. Produz também aquele que considera ser um dos ex-libris da região: o Moscatel de Setúbal.
Com instalações planas e agradáveis fui recebida por Elsa Silva da equipe de enoturismo que apresentou todos os detalhes desde a criação da vinícola até sua produção e terminamos com uma prova de vinhos na Adega Velha, onde estagiam as pipas de Moscatel de Setúbal. Foi uma degustação primorosa com vinhos e produtos alimentícios produzidos na região como torta de laranja (feita com laranja amarga), compota de abóbora e canela, frutos secos, queijo fresco, queijo de azeitão e pães. Foram sete vinhos degustados, incluindo grandes ícones da vinícola: Venâncio Costa Lima Branco Premium 2019, Venâncio Costa Lima Carácter Premium Tinto 2019, Venâncio Costa Lima 4a Geração Tinto 2018, Venâncio Costa Lima Moscatel de Setúbal 2018, Venâncio Costa Lima Moscatel de Setúbal Reserva da Família, Venâncio Costa Lima Rubrica Moscatel de Setúbal 10 anos e Venâncio Costa Lima Moscatel Roxo 2015 DO Setúbal. A adega também conta com uma bela loja onde os visitantes podem escolher e adquirir seus vinhos preferidos.
Casa Atalaia
Estivemos na Casa Atalaia que se considera uma adega com acessibilidade, fica dentro da Vila de Palmela, mas logo que cheguei foi notável as dificuldades para acessibilidade:
Agradeci a atenção, dada as dificuldades, cancelei a visita no mesmo momento e, portanto, acabamos não conhecendo o local. São por esses motivos e outros que considero importante a divulgação da necessidade de espaços com acessibilidade “viáveis”, mas, acima de tudo, é importante que certos estabelecimentos tenham noção do que é acessibilidade e principalmente tenham empatia e respeito que são fundamentais não só para portadores de necessidades especiais, mas para o público em geral, subidas íngremes, aclives, declives (descidas) e degraus são inimigos dos cadeirantes.
De forma geral fomos muito bem recebidos nas outras adegas, com acolhimento e compreensão, ótimas degustações, visitas e, segundo Ricardo Costa Esteves, “foi uma experiência nova sobre a envolvência do vinho e ganhei um gosto que eu não conhecia, a visita foi boa e importante para sensibilização e deve ser realizada por quem está nessa situação, porque há fatores que passam despercebidos por quem não vive essa realidade”, destacou. Por fim, é importante destacar que a discussão da acessibilidade é fundamental e urgente em todos os contextos, inclusive no mundo dos vinhos, contamos com o auxílio da Técnica de Enfermagem Vitória Aparecida Costa.
No vídeo abaixo é possível avaliar alguns momentos nas adegas que visitamos e, ao final, breves imagens de como são necessários os espaços para estacionamento de veículos de cadeirantes. Clique aqui e acesse pelo YouTube.
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