Segunda-feira, 20 de Maio de 2024

Coluna Lettera: ‘Não amo o meu irmão e outras coisas não ditas’, por Francielly da Rosa

2024-05-08 às 10:19
Foto: Freepik/Reprodução

Estava pronta para dormir, mas, fugindo à promessa do sono, sentei-me na cama de repente para tirar as letrinhas da cabeça. Elas já me tomavam por completo há um longo tempo, então, resolvi dispô-las pouco a pouco, ordenando as coisas do dia passado e do futuro, caminhos confusos nos quais me deparei com essa questão que me acertou em cheio. Não amo o meu irmão.

Levei-o durante a tarde para fazer o título de eleitor, obrigação que surge quando a criatura se aproxima de completar os tão esperados dezoito anos! Tão esperados para qualquer outra pessoa, menos para ele. Ele, ao contrário, não quer. Percebo no rosto juvenil e na expressão de tédio que de vez em quando povoa aquele rosto, que as responsabilidades da recém-descoberta vida adulta vão o atribulando e causando uma ansiedade desconfortável. Eu, é claro, me divirto com tudo isso! Precisa decorar o número do RG e do CPF! Precisa fazer isso, precisa fazer aquilo… Diz a mãezinha tão ansiosa quanto o filho, e eu sorrio olhando de atravessado pela sala. Ele, em retorno, responde o de sempre: “Misericórdia!”

Após três horas esperando em uma fila que dava a volta em torno do Fórum, finalmente chegamos ao balcão em que uma senha numérica nos organizava num imenso salão. Não éramos mais pessoas estranhas, rostos sem nomes, agora, éramos números, e o nosso era o 516. Em torno de 51 pessoas estavam ainda à nossa frente. O calor da tarde fustigando a todos. Olhávamos um para o outro com um olhar caído e sorrimos. O ambiente estava repleto de mosquitinhos que nos faziam agitar as mãos com pressa e nos aborreciam demasiadamente. Olhei para ele demoradamente, enquanto um pensamento me cortava as ideias. Disse: Quanto mosquitinho! Que tal eu gritar aqui quem é que não tomou banho hoje? – ele riu, chacoalhando a cabeça e eu continuei. Aposto que o REXONA já abandonou metade desse povo! Mas também!!! Três horas na fila debaixo do sol, não é para menos, né?! E ele soltou uma gargalhada, dizendo a frase de sempre: Misericórdia!

Olhei para aquela criatura de quase dezoito anos, rindo, rindo como os jovens adolescentes riem, riem com vergonha, abaixam a cabeça, a voz desafina, o riso afrouxa, às vezes, um porquinho aparece em meio ao riso, para a vergonha juvenil. Fiquei pensando por um momento sobre o amor, esse amor de irmão que as pessoas falam, e percebi que eu não amo o meu irmão.

O pensamento me cruzou o dia e revirou a noite, quando, finalmente, após sermos atendidos, eu disse: Venha. Vou te levar para tomar um café… nós merecemos depois de toda essa espera!

A rua movimentada dificultava o cruzamento, quando um lado estava livre, um carro surgia do outro, e ele, nesses impulsos de jovem, fez menção que atravessaria, ao que o meu braço estendeu-se num ímpeto e eu disse: – ESPERE! Depois nós dois atravessamos correndo e rindo.

Sentamos na cafeteria e fizemos o pedido, ele pediu um cappuccino especial que se chamava “cappuccino explosão”, um copo com as bordas decoradas de chocolate que acompanhava uma bolinha de chocolate no interior, ao lado uma jarrinha com o conteúdo. Objetivo: lentamente preencher o copo decorado com o café da jarrinha e ver a bolinha derreter. Fiquei sorrindo enquanto olhava para aquela criatura. Quase dezoito anos, acredita?

Peguei o celular, que aliás estava zerado de bateria, e, com o último suspiro de carga, fiz um pequeno vídeo. O rapazola, como todo jovem atrapalhado, derramou metade do conteúdo para fora da xícara para o riso de nós dois. Ri e ele riu encabulado. E eu ri ainda mais. Fiquei olhando para ele e pensei mais uma vez, eu não amo o meu irmão, não!

Eu não amo o meu irmão como os irmãos se amam, eu o amo como um filho! Quando os meus olhos caem ao encontro daquela criatura, que me faz sentir uma jovem senhora ao perceber que ele fará tão breve seus dezoito anos, eu percebo o quanto o admiro e tenho carinho por ele.

Nas infinitas noites em que sentamos no seu quarto e eu contei a ele as histórias das minhas desilusões amorosas e ele riu, dizendo: “Misericórdia!”, e depois perguntava detalhes, enumerava personagens e elaborava um grande conto de fantasias com as pérolas da minha jornada amorosa. Às vezes, jogávamos tarot para descobrir os descaminhos da minha vida e da dele, e ríamos, refletíamos. Também foi ele que em tantos outros dias reuniu-se à mesa e compartilhou das “fofocas” familiares. Como nós gostamos de dizer, não somos fofoqueiros, porque fofoqueiro é aquele que espalha a fofoca, nós só gostamos de estar bem informados e, em geral e quase sempre, a informação adormece no leito da casa.

Eu o amo como um filho, mas não digo isso a ele. Eu cuido dele como uma mãe cuida de um filho, mas não quero que ele perceba isso. Eu o adoro como os fãs adoram os seus astros, mas não quero que ele saiba. Eu o admiro com a alegria dos astrônomos e cientistas que estudam e descobrem novas estrelas, esta, descobri eu mesma sob o teto de casa, e gostaria que ela fosse minha, mas, ao mesmo tempo, que ela fosse do alto do céu para brilhar e ganhar o mundo, assim como as mães desejam para os seus filhos.

A menina de oito anos que chegava da escola aos prantos porque era a única criança que não tinha um irmão na sala de aula, agora, tem nos olhos o reflexo de uma criatura de quase dezoito anos… e sorri… e tem os olhos cheios de brilho e de lágrimas de orgulho, porque o ama, não como um irmão, mas como se fosse filho seu, como se devesse a ele um cuidado maior e a apresentação de um mundo que será todo dele, um guiar da caminhada que é também o permitir que descubra o seu próprio caminho.

Eu não o amo apenas como um irmão, mas esse amor que sinto e descubro é além, eu o amo e admiro como ser humano, a doçura, a paciência e a empatia que ele tem. Talvez seja por isso que em casa nós o chamamos carinhosamente de “buda”.

Dezoito anos! A frase ficou ecoando em minha mente o dia todo, e atravessou a fila de espera, atravessou o café e veio repousar no alto do teto do quarto comigo. Amanhã, quando eu acordar, arrumarei um filho de oito anos para a escola e verei um de dezessete, quase DEZOITO (!!!!) se arrumar também! E foi assim, nessa tarde calorosa e cheia de espera que eu descobri que o amor é assim… um cuidado que não se finda, um carinho que não se esgota e um querer bem que é para toda a vida! Eu não amo o meu irmão como um irmão, porque o meu amor vai além! Eu o amo como se fosse o meu filho também!

Coluna Lettera

por Francielly da Rosa

Francielly da Rosa é graduada em Letras Português e Inglês pela Universidade Estadual de Ponta Grossa. Atualmente, é mestranda do Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem, com ênfase em estudos literários, também na UEPG. Ela é escritora, cronista e coautora do livro "Crônicas dos Campos Gerais". Descobre, entre as palavras que lê e escreve, a motivação que sustenta seu viver. Escreve crônicas, contos, poesias e, às vezes, se aventura no gênero romance. Além disso, participa de projetos de incentivo à leitura e de outras atividades culturais. Possui diversas crônicas premiadas e publicadas em jornais e sites locais. Em virtude de seu trabalho como escritora, recebeu duas moções de aplauso da Câmara Municipal de Ponta Grossa. Também foi premiada no Festival Literário de São Caetano do Sul, na categoria miniconto, sendo a única representante da cidade de Ponta Grossa.