Sábado, 04 de Maio de 2024

Crônica D’P: Três horas e trinta dias, por Kleber Bordinhão

2023-09-10 às 14:13
Foto: Reprodução

Era quase mensal. Assobiava no portão ou batia palmas, como se não fosse íntimo. Camisa engomada com os dois primeiros botões sempre abertos. Calça vincada e sapatos impecáveis. O sol da tarde parecia arredondar ainda mais o seu sorriso. Dentes separados e aquela impressão de sempre estar de boca cheia, só não mais característicos do que o pingente sobre os pelos do peito.

Minha mãe sondava as palmas entre as cortinas, acostumada com os pedidos de comida, dinheiro ou o que tivéssemos em casa. Reconhecida a figura, sorria e trocava o olhar cúmplice comigo de quem já sabia onde a tarde terminaria. Assim que o portão abria eu já escutava o tilintar das garrafas no saco de mercado.

Depois dos abraços, ele se sentava na mesma cadeira da mesa da cozinha, minha mãe nem precisava convidar. Então puxava um cigarro. Era meu sinal para correr na estante e trazer o cinzeiro de barro, objeto que, lá em casa, além de enfeite de gosto suspeito, só tinha utilidade para aqueles dias. Já fumando, agradecia-me entregando os doces que dividiam espaço com as cervejas na sacola.

Seguia o ritual lembrando o réveillon em que me contou quase integralmente um filme de mais de três horas – mais velho, descobri que se tratava do clássico “Ben-Hur”. Falava, ria e dava mais uma boa tragada no cigarro. Nesse ínterim, minha mãe já havia aberto uma garrafa e ele completava o roteiro bebendo o primeiro e generoso gole de cerveja. Perguntava sempre pelo meu pai, mesmo sabendo onde ele estava naquele horário e dia da semana.

A conversa com minha mãe seguia o protocolo – como vocês estão? – e você, como está? Era minha deixa para ir pro quarto. Quanto mais demorava, mais pastosa era a voz que me chamava. “Vai lá e pegue mais três pra nós.” Eu achava curioso aquele “nós”. Minha mãe nunca bebia da cerveja dele, então eu pensava que tinha algo a ver comigo, fazia cara de quem havia entendido uma piada, contava o dinheiro e partia agoniado.

Eu tentava voltar o mais rápido possível, talvez não desse tempo de acontecer, ou, se eu demorasse, já teria passado. Mas nunca funcionou. Toda vez que eu voltava, lá estava meu tio em prantos. Consolado pela minha mãe, lamentava entre um trago e outro. Eu me aproximava, colocava as cervejas na mesa e tentava não chorar junto. Ele me agradecia e eu voltava pro quarto.

Lá pelas seis horas, era minha mãe que me chamava. Meu tio estava indo embora. Já não era aquele homem seguro e contente de horas atrás. Outro botão da camisa havia se aberto, o sorriso já não se sustentava, tal como ele. Negava o pouso, agradecia minha mãe e deixava lembranças para meu pai. Do portão, nossos olhares o seguiam até a esquina, onde dobrava até o mês seguinte.

Kleber Bordinhão é escritor, autor de livros de poesia e crônica: @kleberbordinhao

Conteúdo publicado originalmente na Revista D’Ponta #296