No início de abril, uma carta aberta assinada por mais de 30 cientistas, pesquisadores e economistas defendia a adoção de um conjunto de medidas com recomendações para conter o avanço da Covid-19 no Brasil, entre elas, um lockdown nacional organizado por prefeitos, governadores e pelo governo federal. A proposta, no entanto, foi ignorada. Menos de um mês depois, nesta quinta-feira (29), o país ultrapassou os pela doença, chegando a 400.021 mortes e 14.541.806 casos confirmados, de acordo com dados do consórcio de imprensa.
Foram necessários apenas 36 dias para somar mais uma centena de milhares de mortes. O país ultrapassou 300 mil mortes por Covid-19 no dia 24 de março, dois meses e meio após ter chegado a 200 mil mortos, em 7 de janeiro de 2021. Já esta marca demorou pouco mais de cinco meses após a pandemia chegar aos 100 mil mortos, o que ocorreu em 8 de agosto de 2020.
O Brasil hoje é segundo país do mundo a romper a barreira de 400 mil vidas perdidas pela Covid-19 e apenas nos quatro primeiros meses de 2021, o país já soma mais óbitos pela doença do que o registrado ao longo de todo o ano passado.
Para os especialistas ouvidos pelo iG , ignorar soluções e subestimar o perigo do vírus são fatores que estão na raiz de todos os problemas que levaram o país ao colapso.
Ana Maria Malik, professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e membro do conselho da Associação Latina Para Análise dos Sistemas de Saúde (ALASS), que também assinou a carta, explica que ter um lockdown nacional de uma vez não é tão simples e precisaria de uma coordenação central para ser efetivo.
“Alguns estados e municípios se preocuparam mais do que outros. Alguns locais resolveram, inclusive, ignorar as medidas de isolamento social e a população não deu a atenção necessária”, avalia.
Ela lembra que algumas cidades até tiveram regras mais restritivas, como a proibição de circulação de pessoas em alguns horários do dia e a limitação do funcionamento do comércio e serviços. A professora da FGV esclarece, no entanto, que medidas de lockdown precisam de outras políticas e estratégias em conjunto, como auxílio financeiro para que a desigualdade sociais não aumente ainda mais.
O epidemiologista Pedro Hallal, ex-reitor da Universidade de Pelotas (UfPel), celcula que três em cada quatro mortes pela Covid-19 ocorreram pela falta de coordenação nacional no combate à pandemia.
“A falta de coordenação nacional é responsável por três de cada quatro mortes no Brasil. Hoje saiu um comentário na (revista científica britânica) Nature falando em uma de cada duas. Acho que ainda é conservador, acho que três de cada quatro, com os dados que eu vejo. Não há dúvida de que muito mais gente morreu e seguirá morrendo hoje no Brasil do que seria o naturalmente esperado pelo curso natural da pandemia”, afirmou Hallal.
O pico no número de mortes por Covid-19 do Brasil hoje já é considerado um “platô” de 3 mil mortes diárias, no qual as estatísticas não pioram, mas resistem a dar sinais de melhora. Em boletim extraordinário divulgado no último dia 28, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) reafirma a tendência de manutenção deste cenário.
“Na visão dos pesquisadores do observatório, o quadro atual pode representar uma desaceleração da pandemia, com a formação de um novo patamar, como o ocorrido em meados de 2020, porém com números muito mais elevados de casos graves e óbitos, que revelam a intensa circulação do vírus no país”, afirma a entidade. Caso mantido este patamar, sem redução, isso pode significar mais 200 mil mortes até o meio do ano.
“Quando a gente fala em morte, não é uma estatística, são pessoas com família, se morrer apenas um que poderia não ter morrido, ja é horrível”, acrescenta Ana Maria Malik.
O médico sanitarista Eduardo Massuda, professor da FGV, que também assinou a carta com recomendações aos governistas, afirma que um dos principais problemas no enfrentamento da Covid-19 no Brasil é que não há ação conjunta.
“O que temos hoje é são medidas descoordenadas nessa guerra contra o coronavírus. E se cada um faz de um jeito diferente, a chance de vencermos é pequena. Quando a gente observa o Brasil com 400 mil mortes pela Covid, com a estrutura do SUS e sua capacidade de organizar resposta às emergências de saúde pública, vimos que a situação poderia ser muito diferente”, argumenta.
“Em uma comparação, outros países que tiveram melhor capacidade de enfrentar a pandemia, como a China, não chegaram a superar 5 mil mortes, no total, desde o começo da pandemia”, avalia Massuda.
Natalia Pasternak, pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas da USP e presidente do Instituto Questão de Ciência, concorda que falta coordenação nacional, mas avalia que após mais de um ano da pandemia, é preciso admitir que isso não vai ocorrer.
“A segunda opção é existir uma coordenação entre os prefeitos e governadores para que a gente possa ter fechamentos organizados , com acordos entre as regiões. Vai acabar sobrando para esses gestores fazerem o trabalho do governo federal, mesmo sem estarem equipados para isso”, aponta a cientista.
A especialista diz que o problema é estabilizar o número de mortes em um patamar muito alto e as pessoas acharem isso bom. “Quando em outros países essas estatísticas seriam alarmantes e motivo para fecharem tudo. Chegar nesse platô de 3 mil mortes não pode nunca ser considerado normal e nem motivo de alegria”.
Uma vida livre do vírus ainda é um sonho muito distante para os brasileiros. Para Natalia Pasternak, as perspectivas para os próximos meses não são boas, principalmente porque o Brasil não tem como aumentar drasticamente a vacinação , em um cenário mundial que o imunizante contra a Covid-19 é escasso e com outros países chegando na frente.
“Não fizemos a lição de casa e nem o planejamento adequado em setembro e outubro do ano passado quando tivemos a oportunidade de comprar imunizantes dos grandes fabricantes. Esnobamos . A gente tem agora a Índia passando por um surto grave que vai impactar a vacinação no Brasil”, afirma a pesquisadora.
“Então vamos ficar nos arrastando no primeiro semestre nesse abre e fecha do comércio, com melhoras e pioras dos índices, até que mais vacinas cheguem no segundo semestre para que a gente consiga avançar”, acrescenta Pasternak.
O último balanço da vacinação contra Covid-19, da quarta-feira (28), aponta que 30.740.811 pessoas já receberam a primeira dose, 14,52% da população brasileira. A segunda dose já foi aplicada apenas em 14.621.694 pessoas (6,90% da população do país) em todos os estados e no Distrito Federal. No total, 45.362.505 doses foram aplicadas em todo o país.
O médico Eduardo Massuda alerta que enquanto não há vacina para todos, ou um tratamento efetivo contra a doença, o único caminho que demonstrou eficácia são as restrições urbanas .
“Diferente do ano passado, esse ano a pandemia foi mais intensa, com picos concentrados em várias regiões do país. Hoje, não há outra alternativa que não um lockdown nacional por um período de tempo suficiente para reduzir a transmissão da doença no Brasil”, argumenta o professor.
Para ele, no momento em que se afrouxam as medidas de restrição de mobilidade urbana, não há outra coisa a se esperar, se não um retorno mais forte da pandemia. “Isso é algo esperado, é só olhar o que está acontecendo na Índia, se a gente não mantiver as restrições podemos chegar em patamares maiores do que já tivemos”, compara.
“Só vamos conseguir esse controle quando a população estiver suficientemente vacinada, como é o exemplo de alguns países com alta cobertura vacinal, que reduziram o número de óbitos, mas não o de casos. Isso significa que as medidas de restrições precisam continuar, por mais que se tenha vacina, justamente para evitar a disseminação dos vírus e de novas cepas resistentes aos imunizantes”, explica Massuda.
O epidemiologista Pedro Hallal considera o Brasil como uma “fábrica de variantes” do novo coronavírus (Sars-CoV-2). Para o especialista, hoje o país representa uma “ameaça global” do ponto de vista sanitário e epidemiológico.
“O Brasil já é uma fábrica de variantes . A gente não ouviu falar da variante da Nova Zelândia, da variante australiana. E a gente não vai ouvir falar porque quanto mais circula o vírus, mais surgem novas variantes. Então, o Brasil representou e continua representando uma ameaça de saúde global por causa disso. Porque era um lugar onde ele não estava mais descontrolado”, pontua.
Na visão do pesquisador Adriano Massuda, a pandemia vai permanecer por um bom tempo no Brasil e a saída é apostar no monitoramento diário das infecções, principalmente com o aumento da testagem.
“Vamos precisar construir uma inteligência epidemiológica para monitorar o número de caso e o tipo de vírus que está circulando, porque no momento que se encontre novas cepas , é fundamental tomar medidas para bloquear essas variantes. O que aconteceu em Manaus, por exemplo, com a identificação de uma nova cepa e a transferência de pacientes para outras regiões do país, ajudou a disseminar a variante para todo o Brasil”, critica o médico sanitarista.