Sisudos historiadores, mormente aqueles que possuem formação acadêmica, não admitem que a história seja contada com base em fatos não assentados em fontes concretas, repugnando-lhes a tal tradição oral, ou, ainda, a mistura de lendas a eventos de realidade indiscutível. Exigentes, pretendem que a história retrate uma situação determinada e palpável, sem os complementos ditados pela imaginação popular ou pela quimera dos poetas.
Por isso, já tivemos oportunidade de ler opiniões e de ouvir vozes técnicas fazendo blague com o capítulo das pombinhas que ilustra a história princesina (o brasão e a própria bandeira do município) e que vem narrado, ao longo dos anos, por diversos polígrafos. Alguns desses críticos, com refinada ironia, declaram que na década de 1820 nem pombas domésticas existiam na região onde está hoje plantada a cidade de Ponta Grossa, esquecendo-se, todavia, que o pombo selvagem (Columba livia) é o antepassado de praticamente todas as variedades dessa espécie, e que ornitólogos de nomeada registram a presença de aves de estimação nos lares desde a Idade do Bronze.
Antes, porém, de outras considerações, é preciso que se fixe o episódio no tempo e no espaço. Sebastião Paraná, na “Chorographia do Paraná”, editada em 1899, após dizer que Miguel da Rocha Ferreira Carvalhaes foi quem doou as terras para a instalação do povoado, afirma que no início houve uma certa dúvida sobre o local onde deveria ser construída a capela dedicada a Santa Ana, e onde, por consequência, surgiriam as primeiras edificações do aglomerado urbano: uns eram de parecer que o melhor lugar se situava na chapada da Cascavel; outros entendiam que o sítio ideal era a elevação onde, ao lado de centenária figueira, já fora levantada uma cruz. Para pôr fim à disputa, acordou-se, naquela segunda década do século XIX, que se soltassem pombos, sendo definitivamente escolhido o lugar onde as referidas aves pousassem. “Estas, depois de adejarem por um tempo, como que escolhendo o ponto onde deveriam assentar, enveredaram em direção ao arvoredo plantado junto à cruz, erguida na colina”, escreve Paraná.
O dr. Brazílio Ferreira da Luz, jornalista, político e médico, que residiu e clinicou em Ponta Grossa no ano de 1886, em data bem anterior àquela em que foi editada a obra de Sebastião Paraná, conta também, no livro “Páginas Antigas”, a mesma história: “A pomba, mensageira, subiu, volteou no espaço por largo tempo, acalentando esperanças de um e de outro [dos dois proprietários de terras que disputavam a primazia da localização da vila], e, orientada, rumou para os braços de um cruzeiro, onde pousou, afinal. Ao lado desse cruzeiro, dominando a planície, construiu-se a capella [SIC] e, ao redor, agruparam-se as primeiras casas da povoação. Assim nasceu a Princeza [SIC] dos Campos, tendo por throno [SIC] o alto do morro.”
Depois, Ermelino de Leão, no “Dicionário Histórico e Geográfico do Paraná”, e o “Álbum do Paraná” (1921) repetem idêntica narrativa, que, em 1935, Manoel Cyrillo Ferreira (“Miscelânea da História de Ponta Grossa”), descendente dos fundadores da cidade, confirma com mais detalhes, asseverando que a arbitragem dos pombos na localização da capela e da sede da futura vila foi resolvida em reunião da qual participaram, além do sargento-mor Miguel Carvalhaes, ainda o seu cunhado Domingos Ferreira Pinto (pai do Barão de Guaraúna), Benedicto Mariano Ribas, Domingos Ferreira Lobo, Atanagildo Pinto Martins e outros.
Em palavras inspiradas e poéticas, o evento ainda é confirmado pelo provecto senador Flávio Carvalho Guimarães, que em 1921, no “Guia de Ponta Grossa”, acentua que tudo provém do eco de testemunhas oculares, que foram transmitindo aos filhos e aos netos toda essa história tecida de magníficos ensinamentos: “Sobre uma cruz esquecida e velha, abandonada, solitária, sem lágrimas e sem prece, com os braços cansados de silêncio e abertos às mágoas das almas que por ali transitavam, o carinhoso pássaro pousou… Nesse dia, aqueles homens começaram o trabalho de união mais íntima em prol de seus ideais de coesão e harmonia, e, com fé, lançaram a semente de uma grande cidade, nascida e formada aos beijos da paz e aos raios do mais fraternal litígio que hei conhecido em minha vida.” Não se há de olvidar que o ilustre parlamentar, filólogo e jurista promana de famílias que há três séculos marcam presença nos Campos Gerais.
Em 1943, Pedro Novaes, do Círculo de Estudos Bandeirantes, escreveu a “Fundação de Ponta Grossa”, no qual lembra que Miguel Carvalhaes, desde 1805, era proprietário, dentre outros imóveis, da fazenda Rincão das Pombas (lugar onde atualmente está plantada uma parte do Centro da cidade), repisando, em seguida, a história das duas avezinhas. Na mesma linha é o posicionamento de Reynaldo Ribas Silveira, um dos mais fecundos pesquisadores princesinos.
Em tempos mais recentes, Valfrido Piloto (“Tinguianas”) e Eno Theodoro Wanke (“O Vôo da Pombinha”) também se reportam ao assunto, escrevendo o primeiro que “bem conhecido, por lhe ouvirmos reiteradas referências, é aquele tatalar de asas nevíneas, esvoaçantes na luz, quase hipnotizadas pela imensidade verde e azul do céu e dos campos”, sendo certo que o segundo, ponta-grossense nato, além do belo poema traduzido para vários idiomas, elaborou ainda matéria específica a respeito, para concluir que o episódio das pombinhas é efetivamente um fato de compleição histórica. Não se pode esquecer também que, na aquarela chamada “La Ponta Grossa”, pintada por Debret em 1827, percebe-se claramente a existência do tão falado cruzeiro em que as aves teriam pousado.
Ao lado, pois, do colorido que os cronistas, inspirados e de boa fé, emprestaram ao assunto, existem fundadas razões para que o tema não seja olhado com os olhos da desconfiança e da mofa.
Para nós, trata-se da mais pura tradição oral que, se falsa ou fantasiosa, teve muito tempo para ser desmentida pelos pósteros dos primeiros povoadores. Lembremo-nos, por exemplo, que o Barão de Guaraúna, filho de “Mingote”, viveu em Ponta Grossa até o ano de 1891, e que o brigadeiro Manoel Ferreira Ribas, mais o filho comendador Augusto Ribas e o neto governador Manoel Ribas (três gerações de Benedicto, testemunha do episódio à semelhança de Domingos), também por aqui estiveram ao longo de muitas décadas, participando ativamente da vida pública princesina, sem nunca apresentarem qualquer contestação a essa história.
Se, porém, algum dia restar evidenciado que tudo não passa de mera lenda, ainda assim não se há de apagar o caso das pombinhas da história que narra as origens da Terra Pitangui, afinal, Roma ergueu monumentos em homenagem à loba do Palatino que amamentou Rômulo e Remo, atribuindo-lhes convictamente a sua fundação. Toda a história da capital da Itália, aliás, tem na lenda o seu início: recorde-se do rapto das Sabinas, da Ninfa Egéria de Numa, de Camilo, de Coriolano. Lembre-se também de crônicas religiosas e de cavalaria, dos tempos mais modernos, em que há muito mais de lenda do que de história real: El Cid Campeador, os Pares de França, a Távola Redonda, Rolando, etc.
Como arremate, é de se evocar as palavras de Antero Figueiredo, para quem “de toda a deformação que da história se faz, a única desculpável, por ser a única aproveitável ao sonho (alimento da vida), é a que se exerce no sentido da beleza – convergência luminosa em que os espíritos se encontram extasiados, acordes e amigos”.
Josué Corrêa Fernandes é escritor, juiz de Direito estadual aposentado, ex-subprocurador do estado do Paraná e ex-secretário de Assuntos Jurídicos da Prefeitura de Ponta Grossa