Sábado, 06 de Setembro de 2025

Psicólogos explicam como bets geram dependência e prejuízos bilionários

O vício em jogos de azar eletrônicos, como o popular ‘Jogo do Tigrinho’, é um problema alarmante e cada vez mais comum, impulsionado por plataformas altamente estimulantes e acessíveis
2025-09-06 às 11:50
Foto: Reprodução

REVISTA – Ao longo do ano de 2024, os brasileiros perderam R$ 36 bilhões – o equivalente a 0,3% do PIB – em plataformas como o ‘Jogo do Tigrinho’, aplicativos de apostas esportivas e cassinos on-line. Os dados são do Banco Central e representam a diferença entre os valores investidos pelos jogadores (R$ 239 bilhões) e os prêmios pagos aos usuários (R$ 203 bilhões).  O que começa como uma diversão inofensiva pode se tornar um problema sério quando vira um comportamento compulsivo que afeta o orçamento das famílias, a saúde mental dos jogadores e a economia do país. O vício em apostas, também conhecido como transtorno do jogo ou ludopatia, é uma condição de dependência comportamental, que vem crescendo especialmente depois que a era digital colocou os jogos on-line ao alcance das mãos.

O psicólogo Alberto Luiz Chemin, especialista em Terapia Cognitivo-comportamental e em dependência química, que atende em Ponta Grossa, afirma que o vício em apostas causa reações no cérebro muito semelhantes à dependência química. “Existe uma base neurológica comum entre o vício em jogos de azar e o vício em substâncias como álcool ou drogas. Ambos ativam intensamente o chamado sistema de recompensa do cérebro e causam a liberação de dopamina, um neurotransmissor ligado à sensação de prazer e à motivação”, explica.

O psicólogo observa que nos jogos de azar a expectativa de ganhar gera uma descarga de dopamina muito parecida com a que ocorre quando se consome uma droga. “Com o tempo, o cérebro passa a desejar essa sensação e começa a pedir mais, mesmo que a pessoa esteja perdendo dinheiro ou sofrendo consequências negativas”, detalha, acrescentando que a principal diferença entre a dependência química e o vício em apostas é que no segundo não há ingestão de uma substância externa. “Do ponto de vista do cérebro, a reação é muito similar. O padrão de ativação neurológica e a dificuldade em resistir aos impulsos são bem parecidos”, afirma.

Segundo Chemin, certos traços psicológicos elevam o risco de vício em jogos de azar. “Pessoas com altos níveis de impulsividade, baixa tolerância à frustração, busca intensa por recompensa ou dificuldade no controle de emoções são mais vulneráveis” / Foto: Reprodução

A recompensa que nunca chega

Chemin menciona que o vício em jogos de azar se mantém apenas pela esperança de ganhar e não depende de vitórias frequentes. “O que sustenta o vício é justamente a recompensa esporádica e imprevisível. A simples possibilidade de ganhar, mesmo que rara, é suficiente para manter a pessoa presa no ciclo de apostas”, assinala, acrescentando que esse conceito é conhecido na psicologia como “reforço intermitente”. “Quando a recompensa acontece de forma aleatória, o comportamento se torna ainda mais resistente. Ou seja, a pessoa continua apostando mesmo com muitas perdas, acreditando que se jogar mais uma vez a sua sorte vai mudar ou que da próxima vez ela vai ganhar”, comenta.

Além da incerteza da recompensa, a sensação de quase ganhar aumenta a ilusão de controle sobre o jogo e contribuiu para o vício. O psicólogo explica que essa impressão é muito estudada em jogos de azar e tem nome técnico – ‘efeito de quase acidente’. “Ele acontece quando o resultado da aposta parece estar quase certo, como acertar dois números na loteria ou ver o símbolo da máquina parar logo acima do prêmio. Apesar de a pessoa perder, o cérebro interpreta como se estivesse próximo do sucesso e mantém a pessoa motivada a continuar apostando, porque na partida anterior quase deu certo”, descreve, destacando que estudos mostram que o cérebro responde a um quase ganho de forma muito semelhante a um ganho real, liberando dopamina e reforçando o comportamento.

“Existe uma base neurológica comum entre o vício em jogos de azar e o vício em substâncias como álcool ou drogas”, afirma Chemim / Foto: Reprodução

A origem do vício

De acordo com Chemin, qualquer pessoa pode desenvolver o vício em jogos de azar, mas alguns traços psicológicos aumentam o risco. “Pessoas com altos níveis de impulsividade, baixa tolerância à frustração, busca intensa por recompensa ou dificuldades no controle de emoções são mais vulneráveis”, enumera, enfatizando que as causas podem estar associadas a vários fatores, incluindo predisposição genética e presença de outras doenças psiquiátricas, como TDAH, depressão e ansiedade. “Para a psicologia comportamental, os vícios surgem da interação entre características individuais, pensamentos automáticos ou distorcidos e situações do ambiente. Ou seja, o contexto é fundamental”, observa, citando que fatores como estresse, problemas financeiros e isolamento social podem ser agravantes e contribuir fortemente para o desenvolvimento do vício em jogos de azar.

Segundo o psicólogo, são muitos os motivos que podem levar alguém a apostar compulsivamente. “Na prática clínica, observamos que muitos apostam para fugir de emoções desconfortáveis, como ansiedade, tristeza, vazio ou solidão. Outros gatilhos comuns incluem tédio, pressão social, rotinas estressantes e problemas financeiros”, descreve. “O jogo funciona como uma forma de anestesia emocional, oferecendo uma falsa sensação de controle, alívio ou excitação. Na psicologia comportamental, nós chamamos isso de modelo estímulo-resposta, em que a pessoa aprende a responder a um estado emocional interno com o comportamento de apostar”, elucida, acrescentando que o mecanismo principal do vício em apostas está no desequilíbrio do sistema cerebral que inibe comportamentos negativos, gerando uma compulsão por jogos de azar.

Pensados para viciar

A psicóloga Patrícia Fabiana de França Ferreira, pós-graduada em psicologia sistêmica, que também atende em Ponta Grossa, lembra que muitos aplicativos de aposta usam elementos de design persuasivo para tornar a experiência mais envolvente e difícil de abandonar. “Os efeitos visuais e sonoros intensos são elementos importantes para atrair a atenção, curiosidade e deixar o ambiente do jogo cativante para o público. Eles trazem a falsa impressão de recreação e inofensibilidade às plataformas de jogos de azar, criando um ambiente que ativa o sistema de recompensa”, afirma, acrescentando que sons de vitória, luzes piscando e animações chamativas são cuidadosamente pensados para manter o cérebro estimulado e aumentar o tempo de permanência no jogo, tornando mais difícil perceber o tempo e o dinheiro investidos.

Patrícia cita como exemplo o jogo de apostas Fortune Tiger, criado pela empresa de softwares PG Soft, sediada em Malta. O aplicativo ficou conhecido como ‘Jogo do Tigrinho’ no Brasil e, apesar da estética lúdica e aparência quase infantil, atrai milhares de adultos. “O mundo infantil, com suas cores vibrantes, explosões surpresas, animais coloridos e falantes, sempre foi atrativo para qualquer público. Nos aplicativos de apostas, essa estética pode fazer com que o usuário demore a perceber os prejuízos reais do jogo”, avalia.

A aparência inofensiva e intencionalmente infantilizada do ‘Jogo do Tigrinho’, segundo a psicóloga, ativa uma sensação de familiaridade e conforto, reduz a percepção de risco e torna o ambiente mais acessível, inclusive para quem nunca teve contato com jogos de azar. “Ao se criar uma plataforma de jogos, tudo é pensado e estudado por profissionais habilidosos para tornar o ambiente um espaço de sensações ilusórias com conotação de ingenuidade recreativa e diminuir as defesas do usuário”, destaca, acrescentando que o cérebro associa aquela imagem colorida a algo inofensivo, mas o comportamento envolvido é de alto risco.

“Os efeitos visuais e sonoros intensos trazem a falsa impressão de recreação e inofensibilidade às plataformas de jogos de azar”, ressalta Patricia / Foto: Reprodução

Quando a diversão vira compulsão

Para Patrícia, uma pessoa pode ser viciada em apostas mesmo apostando valores mais baixos. “Não é o valor apostado que define o vício, mas o grau de prejuízo emocional, comportamental e funcional. A questão não está no valor, mas na prevalência em jogar”, explica, citando que a pessoa que está viciada vai apresentar comportamentos problemáticos, como pensar em apostas o tempo todo, ficar ansiosa quando não está jogando, mentir sobre o tempo ou dinheiro investido e negligenciar outras áreas da vida. De acordo com ela, é importante observar sinais como perda de interesse por outras atividades, isolamento social, mudanças de humor após derrotas e a necessidade de aumentar a frequência das apostas para sentir o mesmo efeito.

A psicóloga menciona que existem critérios específicos que definem o vício em apostas e que podem ajudar a diferenciar o entretenimento saudável da compulsão. “O indivíduo deve apresentar um padrão persistente e recorrente de comportamento de jogo, levando a prejuízos significativos ou sofrimento. Isso inclui perda de controle sobre o jogo, aumento da prioridade dada ao jogo em relação a outras atividades, e manutenção do comportamento mesmo com as consequências negativas”, enumera. O entretenimento saudável, por outro lado, é voluntário, tem limites claros e não causa prejuízos significativos. Nesse caso, a pessoa aposta de forma eventual, com valores planejados e sem impacto negativo em outras áreas da vida.

Patrícia defende que é preciso identificar o vício quando ele ainda está invisível para o apostador e para a família. “A maioria dos jogadores só admite que algo está errado para si mesmo e para a família quando a situação já está no limite, com problemas familiares, aquisição de dívidas, quebra da confiança do seu entorno, ideação suicida, com pouco ou quase nenhuma saída para consequências advindas do vício”, explica. Ela conclui que, ao identificar o problema, o mais importante é buscar auxílio profissional, psicológico e psiquiátrico para tentar evitar consequências irreversíveis.

COMO IDENTIFICAR O VÍCIO EM APOSTAS

– O jogador não consegue parar, mesmo querendo;
– Mente sobre o tempo ou dinheiro que gastou;
– Sente culpa ou arrependimento após apostar;
– Usa o jogo para escapar de problemas emocionais;
– Negligencia trabalho, estudo ou relações por causa do jogo.

IMPACTO DAS BETS NA ECONOMIA

→ Bets causaram perdas de R$ 103 bilhões ao comércio ao longo de 2024;
→ Cerca de 1,8 milhão de brasileiros entraram em situação de inadimplência por conta das bets;
→ População de menor renda deixou de arcar com seus compromissos financeiros para gastar em apostas;
→ Beneficiários do Bolsa Família gastaram, em um único mês, R$ 3 bilhões em bets;
→ A inadimplência elevada pode levar a uma redução no consumo, desaceleração econômica, aumento da taxa de juros e instabilidade financeira.

Texto publicado originalmente na edição 308 da Revista D’Ponta