Sábado, 14 de Dezembro de 2024

Coluna Draft: ‘Pai nosso, que estás no Afeganistão…’, por Edgar Talevi

2021-08-23 às 08:48

As palavras proferidas pelo Galileu ao ensinar seus discípulos a orar repercutem por milênios nas igrejas professionais cristãs. A oração mais recorrente de todos os tempos encontra guarida nos mais diversos momentos por que passam os chamados cristãos, termo este cunhado do livro histórico de Atos dos Apóstolos, escrito por Lucas, médico, por ocasião da reunião dos discípulos de Jesus em Antioquia.

Desde então, o que se observa é a espiritualidade manifesta pela crença de que Deus, de fato, está nos altos céus, mas, ao mesmo, tempo, opera seu Reino na Terra, em união mística com os homens.

Isso posto, a fenomenologia da fé não requer comprovação de seus dogmas para se fazer crível, tampouco sofrerá dano por quaisquer reflexões que possam levantar novas hipóteses e discussões teológicas. Mas, perceba o leitor que, em meio ao caos em que a sociedade hodierna vive – sobrevive – existe – há quem avente a conjectura constante da máxima: “Se Deus existe, por que sofremos”? Ou, ainda, a interrogação pertinente ao contexto holístico do momento: “Se há um Deus, um Ser Supremo, por que milhões perdem a vida injustamente”?

O raciocínio nunca será lógico pelo fato de que se trata de proposições oriundas da Teodiceia, doutrina da área das ciências humanas, ramo filosófico que se ocupa do problema do mal no mundo, em perene tentativa de conciliação com a hipótese da existência de Deus. Não obstante, a Teologia, ciência humana, antropológica, filosófica, especulativa mas, ao mesmo tempo, vanguarda de protagonismos ideológicos, como se percebeu no Tomismo, influente escola do século XIII, ensaia, constantemente, com célebres pensadores, uma resposta digna, técnica e existencial à sociedade, demonstrando estreiteza com a dor humana.

Há a vertente dos que consideram veleidade o pensamento metafísico, considerando-o mero senso comum, alheio ao rigor científico. A esse grupo podem-se incluir alguns ateus – por quem nutro o mais profundo respeito – fortalecendo a tese de que a espiritualidade mais se relaciona com o sentimento de pertença ao meio em que se vive, às incertezas da vida bem ponderadas e à capacidade de resiliência diante do mal, tenha este a definição que lhe for cabível.

Porém, cabe à Teologia e à própria história do cristianismo, bem como a todas as religiões que professam fé em um Ser Supremo e que leiam o mundo sob a ótica de uma razão escatológica, que excede a fragilidade da vida, a análise acurada dos eventos naturais a fim de que se permita responder à intransigente questão: “Viver – Desespero ou Esperança”?

Pois bem, prezado leitor. Se até aqui este colunista se propôs a um introito robusto é porque o tema em pauta é imprescindível à elucidação da realidade do mundo e do modus operandi de que se valem alguns grupos fundamentalistas, despóticos e acéfalos que, pela tomada de poder, roubam a cena com violência gratuita e perseguição religiosa e social. Neste ínterim, também se faz necessária a reflexão acerca do porquê de tantas vidas serem perdidas pela COVID-19, nesta que é uma pandemia – pandemônio – que assola a humanidade como nunca fora visto.

Afinal, voltemos à indagação supracitada: “Se Deus existe, por que sofremos”? Ver-se-á, no roteiro deste breve ensaio, que a resposta passa por múltiplas considerações de natureza filosófica e teológica. Mas, o desafio de conceder paz à alma que sofre é motivador, portanto fundamental neste momento.

Inicio a jornada afirmando, como teólogo, que pela ciência não se pode provar que Deus existe. Isso, no entanto, não evidencia que a ideia de Deus é escapável à razão. Pelo contrário, não é limitador, mas incandesce a discussão. Senão, vejamos: Existem duas formas de realidade, a saber, a testável pelo método científico e a não testável. Nisto reside a diferença entre teorema e axioma. O teorema é o que pode ser provado pelo método científico, tal como se percebe na linguagem matemática. O axioma, por sua vez, é evidenciável, mas não é provável, traduzindo a certeza de algo que não se pode palpar, mas se sabe ser verdadeiro, a exemplo das retas paralelas de Euclides.

Nesta lógica, não se pode provar a existência de Deus pela ciência porque não se trata de teorema, mas axioma. Em outras palavras, pode-se arguir que a ideia de Deus está além da observação e comprovação, extrapolando os limites do cognoscível, mas não sendo refutado por essa mesma razão. A propositura da existência de Deus, pelo método científico, é um axioma, evidenciável, mas distante do poder comprobatório acadêmico.

No campo da filosofia, Henri Bergson afirmou que a originalidade de uma intuição filosófica se mede pelo poder de dizer “não” a tudo aquilo que a época aceita como verdade constituída.

Neste contexto, surge o proeminente pensamento de Kierkegaard, que viveu na Dinamarca do século XIX, fortemente influenciada, como quase toda Europa, pela abrangência cultural de Hegel, autor de impressionante construção intelectual que articula a ideia de a razão, em sua multiplicidade, aviltar o místico e a metafísica. Não obstante, Kierkegaard disse “não” ao paradigma acadêmico predominante, postulando que a existência de Deus não é uma questão teórica que pode ser racionalmente comprovada, mas uma realidade prática que se manifesta na dimensão ética da existência. O conhecimento a respeito de Deus, para este autor, portanto, consiste no próprio processo de existir, sendo usados, para isso, argumentos de natureza prática e antropológica, centrados em uma filosofia da existência religiosa e cristã.

O campo teológico, por sua vez, argumenta, por meio da exegese bíblica, que Deus deve ser aceito pela fé, como demonstra o teólogo holandês reformado Louis Berkhof, em sua Teologia Sistemática, em que preconiza a inspiração das escrituras sagradas pela revelação dada ao homem pela natureza, servindo de base para a aceitação da existência de Deus por meio da fé. Segundo Berkhof, cabe ao homem crer em Deus pela revelação universal das escrituras quanto à criação de todas as coisas que existem por meio da própria mente criativa do Ser Supremo.

Destarte, outro renomado teólogo sistemático, Millard J. Erickson, postula que ao finito homem somente se dará a possibilidade de conhecer a Deus pela revelação vinda do próprio Ente divino, tal como é visto na carta do apóstolo Paulo aos Romanos, 1:20 “Os atributos invisíveis de Deus, assim como o seu eterno poder, como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas”. Isto demonstra a veemente afirmação de que a revelação dada aos homens por meio das escrituras bíblicas a respeito de Deus é suficiente para que se creia em sua existência.

Agostinho de Hipona, talvez o mais fecundo teólogo da humanidade, em sua grandiosa obra “Confissões”, no livro primeiro, disserta: “Acaso não estás todo em todas as partes, sem que haja coisa alguma que te contenha totalmente”? Ao que se observa do pensamento agostiniano, é possível vislumbrar a incapacidade de o homem provar a existência de Deus, mas isso não lhe capacita a negá-la, pois transcende à mente finita humana.

Neste contexto, outro teólogo sistemático, Wayne Grudem, afirma que a existência de Deus se dá a conhecer pela criação, sendo acompanhado em seu pensamento por Juan L. Ruiz de la Peña, pelo que se supõe da composição de sua obra “Teologia da Criação”.

Tendo em vista os argumentos supracitados, constata-se o fato de que Deus prescinde de comprovação científica porque axioma, infinito, evidenciado por meio de fé nas obras de sua criação, seguindo, de igual modo, a doutrina das escrituras judaico-cristãs.

No campo da especulação filosófica do século XX, é possível encontrar dantescos autores que agigantam a discussão a respeito da existência de Deus por meio de assertivas de conceitos universais.

Sugiro a leitura de uma inspiradora obra do escritor C. S. Lewis, “O problema do Sofrimento”, autor este cristão anglicano, ex-professor da Universidade de Cambridge, criador de “As Crônicas de Nárnia” dentre outras produções relevantes, tendo sido notável amigo de outro cristão, católico romano, Tolkien. As páginas deste livro revelam motivos universais que ancoram o pensamento do “crente” nas mais multifacetadas esferas da vida.

Um dos pontos trabalhados por Lewis é a ética universal, qual seja o reconhecimento humano de preceitos de moralidade – não moralismo – presentes em todas as civilizações e reconhecidas pela antropologia moderna. Aqui reside a noção do certo e errado, da consciência universal, como basilar na atividade fenomenológica da fé em um Ser Supremo.

Outro argumento suscitado por Lewis é a concepção do amor, tema abrangente, macrocósmico, parte da humanidade e do humano. Segundo o autor “O amor pode perdoar todas as fraquezas e assim mesmo amar”. Nada mais se abrevia ao amor, que a tudo perdoa e, mesmo no silêncio, torna-se eloquente.

Em outra obra de sua autoria, “Milagres”, Lewis enfrenta o naturalismo e o ceticismo, proposições antigas, que remontam ao século XVI, quando teve início uma particular noção de desarraigar o sobrenatural da psique humana, em que a mente voltou-se cada vez mais para fora de si, desconsiderando a abstração pertinente da alma humana. O autor propõe, para tanto, a premissa de que o próprio pensamento, no qual reside a razão, o abstrato, subjetivo e complexo empreendimento do raciocínio corrobora o conceito do sobrenatural.

Entrementes, a alma foi notadamente conceituada por outro eminente pensador, Carl Jung, na teoria dos arquétipos que, segundo este, existem no inconsciente coletivo e ajudam a organizar a forma como uma pessoa experimenta coisas particulares, ressaltando a importância dos valores subjetivos próprios da mente humana.

Isso posto, o que fica a ser resolvido, portanto, é: “Por que sofremos, se Deus existe”?

Recorramos à obra supracitada de C. S. Lewis “O problema do sofrimento”. Nesta o autor sugere a proposição de Tomás de Aquino “O sofrimento não é uma coisa boa em si mesma, e sim algo que pode ter certa bondade em circunstâncias particulares. Ou seja, se o mal está presente, o sofrimento no reconhecimento do mal, por ser um tipo de conhecimento, é relativamente bom (…)”. Fica evidente que, para Aquino, citado por Lewis, o mal existe como força para superação, possibilitando conhecimento de si próprio e da natureza humana.

Mas, e Deus? Onde fica? Vejamos o que dizem as escrituras, notabilizadas pela credibilidade recebida de inúmeros pensadores em todos os tempos.

O livro sapiencial de Eclesiastes, em seu capítulo 9:2, diz: “Tudo sucede igualmente a todos; o mesmo sucede ao justo e ao perverso; ao bom, ao puro e ao impuro (…) “ (ARA). Note-se que o autor da obra bíblica estabelece o dogma de que o ser humano, seja qual for sua condição social, crença religiosa ou etnia é suscetível a coisas boas e ruins, não se prevendo nenhum privilégio a determinado grupo de pessoas.

Ainda, segundo o evangelho de Mateus, 5:45 “(…) porque ele faz nascer o seu sol sobre maus e bons e vir chuvas sobre justos e injustos” (ARA), é notável a afirmação de que o sofrimento é endêmico à raça humana, assim como a toda a criação.

Porém, afinal, existe esperança? A resposta é, definitivamente, SIM!

Primeiramente, vale lançar mão do pensamento de La Peña, de que Deus sofre conosco. Isto é provado pelo próprio martírio de Cristo, no Gólgota. O Getsêmani também ilustrou o sofrimento cabal da alma humana, embora divina, de um Jesus que viveu toda ansiedade da morte, sendo sabido desde há muito que aconteceria.

Outrossim, a emancipação do ser humano em relação a Deus através da chaga mortal da maldade, leva o homem ao encarceramento de seus valores éticos, permitindo que prevaleça o egoísmo e a autofagia por meio dos vícios da alma.

No entanto, ao se considerar as escrituras como alento em meio a um mundo que vivencia uma doença potencialmente mortal, tal como a COVID-19 e o terror do grupo extremista Talibã, no Afeganistão, pode-se notar que Deus sempre se revela como Supremo, mas imanente; alto, mas perto; justo, mas misericordioso; reto, mas compassivo. Isso carrega a crença de que o ser humano é e sempre foi amparado pela bondade criadora de um Deus que prerroga a si o direito de não criar autômatos, mas possibilita escolhas, pelas quais todos sofrem suas devidas consequências.

Nesta perspectiva, as escrituras ainda demonstram o saber inesgotável de Deus ao afirmar a onisciência divina, como se vê no Salmo 139;4 “Ainda a palavra me não chegou à língua, e tu, Senhor, já a conheces toda”. (ARA). Sendo assim, a esperança para um mundo tenebroso está no consolo de que tudo pertence ao mesmo Deus que criou todas as coisas. O mal que existe só encontra brecha nas janelas de almas levadas pelo desejo de poder, pela insidiosa nutrição do egoísmo e pela capacidade de perverter o direito dos vulneráveis em prol de vantagens próprias.

Sim, prezado, leitor, acredito na esperança. Não creio que esta avance tão somente pelo desejo de fazer o bem, mas, de fato, cooperar com valores universalmente aceitos como dignos de louvor, pois, como disse o teólogo alemão, da igreja confessante, Dietrich Bonhoeffer “O silêncio diante do mal é o próprio mal”.

Para a enfermidade do mal humano no mundo, existem aqueles que, irrevogavelmente, são exemplos de vida: Martin Luther King Jr., Nelson Mandela, Mahatma Gandhi, Madre Teresa de Calcutá e o exemplo maior que, sendo Deus, mostrou como se deve servir em e por amor, Jesus Cristo.

Ademais, continuemos nossa jornada preenchendo nossos dias com o melhor que pudermos, sendo cônjuges melhores, profissionais mais responsáveis, humanos abertos a crescermos e, cada vez mais, a virmos a ser, como diria Jean-Paul Sartre.

Oremos pelo Afeganistão, sabendo que o próprio Deus está lá, como está aqui, vendo, ouvindo e, no tempo certo, julgando.

Pai nosso, que estás nos céus, no Brasil, no Haiti, no Afeganistão e em cada um de nós…

Imagem: Wakil Kohsar/AFP

Coluna Draft

por Edgar Talevi

Edgar Talevi de Oliveira é licenciado em Letras pela UEPG. Pós-graduado em Linguística, Neuropedagogia e Educação Especial. Bacharel e Mestre em Teologia. Atualmente Professor do Quadro Próprio do Magistério da Rede Pública do Paraná, na disciplina de Língua Portuguesa. Começou carreira como docente em Produção de texto e Gramática, em 2005, em diversos cursos pré-vestibulares da região, bem como possui experiência em docência no Ensino Superior em instituições privadas de Ensino de Ponta Grossa. É revisor de textos e autor do livro “Domine a Língua – o novo acordo ortográfico de um jeito simples”, em parceria com o professor Pablo Alex Laroca Gomes. Também autor do livro "Sintaxe à Vontade: crônicas sobre a Língua Portuguesa". Membro da Academia Ponta-grossense de Letras e Artes. Ao longo de sua carreira no magistério, coordenou inúmeros projetos pedagógicos, tais como Júri Simulado, Semana Literária dentre outros. Como articulista, teve seus textos publicados em jornais impressos e eletrônicos, sempre com posicionamentos relevantes e de caráter democrático, prezando pela ética, pluralidade de ideias e valores republicanos.